quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Língua quente

Delinquente, de língua quente. Cada vez mais eu gosto dessas palavras, essas palavras que socam o rosto de alguém culpado por nossa culpa.
Clandestino, no destino do ser de ser clã e o destino do clã é ser clandestino. Cíclico em suas lutas em seus anseios. Toda luta é clandestina. Todo o vencedor sai vencido. Só ganhamos como prêmio outras lutas clandestinas.
Vagabundo, vagando no mundo, vaga, espaço, fundo, abismo..., as dores do real, nenhum segundo é igual, nem um segundo. Nenhum profundo é igual olhe pro fundo, findo.
Estupido, estampado de estampidos, estupro do entupido de massa, estuporado o maior de todos os ruídos, a maior de todas as coragens. 
Vadia, vai-se o dia sobre outro dia, sobre outro dia e sobre outro dia nada se sabe e ela se sustenta, ela peita e ela entende, ela se invade.
Vândalo, em bandos, em pêndulos, os humanistas.
Meliante, desde antes de o mel escorrer, antepara-se a si mesmo, mas respira-se, repara-se e sê. 

Desvio é a única forma de andar.
Choque é a única forma de relação.
Ignorante é ser normal.
Fascinante é o ser-tão.
   
Luta puta
Vagabundos mundos
Medo-cedo
Ficamos mais calmos

Nego, nêgo

Briga bugre e bastas!
Nós garganta
Não nos garanta nada

Viva a luta

Vadia da rua
Ódio remédio
Para espantar o tédio

Apatia 

Apetitoso prêmio
Novalgina em gás
Lagrimas de gênio

Educar é du caralho, velho!

Educação da caça, povo eleito
Feito às nossas falas, feito
Feito os nossos tambores, feito

Repressão 

Represa o cursar do Rio
Alagando em outro canto a voz
Somos nós
Somando nos desafios
De jorrar o Rio em outra foz.


André Vargas

sábado, 3 de agosto de 2013

Dentro do funk, o protesto


A música, eu indicaria primeiramente a música como aquilo que une esse grupo de pessoas numa cultura particular. Claro que se poderia pensar primeiro na questão social, na camada a qual pertencem essas pessoas e assim caminhar para um ponto sociológico cabal, uma visão talvez marxista dessa cultura que estruturaria toda uma crítica social embasada na dialética e na lógica materialista, ou até uma outra visão social, esta, porém, leviana – por não conseguir alcançar o “verdadeiro” sentido dos sistemas de exploração e ficar no meio do caminho do exame social e do exame, por assim dizer, antropológico –, mas acho que eu erraria ainda mais, porque seguindo adiante nessa visão sociológica, deixaria de me aproximar, diretivo ou levianamente, dessa cultura enquanto manifestação identitária e incontrolável que é, e, ainda, estaria caminhando para um lado que parte de, e institui, um julgamento de valor e uma distinção  entre erudito e popular que em nada nos auxilia a compreender essa cultura que reflete e se deixa refletir não só o morro, a favela, o subúrbio, mas toda a relação dos meios, das classes e das culturas que se configuram na nossa sociedade. Então, indico a música como fator determinante, inclusive porque senão não trataríamos de nomes como “funkeiros” e, assim, cunhando com um radical “funk” que indique a música como elemento preponderante.
Eu poderia ir além e dizer, o que seria um deslize clichê, que o funk hoje não é mais “Som de preto, de favelado...”. Que o funk é, em boa parte, assumido e consumido pela classe média e alta e, com isso, assume contornos distintos do que era quando marginalizado, para poder pautar a minha escolha pela música, e não da estrutura social, como determinante de um olhar diferente sobre o mundo, mas acho essa ideia de cultura que se espalha muito concernente e cômoda somente à indústria cultural, pois há ainda muito de particular no funk dentro das comunidade. E é desse funk, ainda não coletado, cooptado e pasteurizado pela indústria cultural e pela moda que vamos falar; esse funk que ainda, e talvez para sempre, revelará um olhar, que, aí sim, podemos dizer conscientemente dos massacrados; dos marginalizados; dos explorados; dos ilhados pela sociedade.
Sim, o funk carioca é uma cultura determinante e completa, como imaginamos ser qualquer outra cultura: com estética, postura, padrões de beleza, moral e ética, ideologias e etc., Tudo aquilo que se pode resumir numa palavra muito utilizada no mundo funk que é o “proceder”. Existe um “proceder funkeiro” e essa palavra – “proceder” – resumiria bem a noção de qualquer cultura, ativa e viva nos homens como elas são, e não estáticas e mórbidas como lemos, estudamos e geralmente identificamos. A cultura nesse “proceder” está como que atrelada ao caminhar, ao se posicionar e ao olhar que cada grupo possui de si mesmo e do mundo.

              “E Aê irmão
Humildade e disciplina
Vida loka
Diretamente do chapa só proceder
Turano se liga vou dizer
É paz, justiça e lazer...”.
(Aê irmão - Menor do Chapa)

O proceder é essa ética própria, essa estética singular, esse portar-se e responder ao mundo que confere ao funkeiro o status de identidade cultural distinta. O proceder é o que diferencia o funkeiro do pagodeiro, grupos que muitas vezes coexistem num mesmo meio. Apesar de, também muitas vezes, ser muito provável que encontremos entre os fruidores dessas manifestações artísticas, pessoas que se somam ao mesmo tempo a funkeiros e pagodeiros, nesse caso, em particular, estou tratando do funkeiro enquanto prática desse olhar, do funkeiro que não é um simples usufruidor da manifestação funk, mas quase que um ativista – enquanto artista – do funk.


É inegável, assim como assinalou Francisco Bosco em sua coluna no Jornal O Globo[1], que existe algo de dionisíaco no ritual que se pratica nos bailes. Uma mistura quase transcendental de corpos em danças frenéticas e eróticas; corpos embriagados de desejo, prazer, suor e álcool. E inegável também que é ali, nos bailes, que o jogo de forças, ou melhor, da lei dos mais fortes se posta explicita, onde homens e mulheres exibem seus atributos corporais, sexuais e materiais em um ritmo quase tântrico, como que se pavoneando uns aos outros. O som do “batidão” ou “tamborzão” (reproduções de batidas de jongo e de pontos do candomblé que assumiram a condução do ritmo, depois das batidas eletrônicas do Miami bass da década de 90) é mais uma marca da herança negra, marca que se encontra também nas roupas, nos cabelos, nas formas, nos corpos e por toda a parte. Alguma nudez talvez venha dessa genealogia tribal e não conferem diretamente, no entanto, o mesmo juízo moral que se encontra na sociedade mediana, ou na burguesia, por assim dizer. Os corpos estão expostos e não faz nenhum sentido a crítica do estilo das vestimentas da exposição da carne, inclusive porque está sendo travada exatamente uma batalha sexual, mas também por causa de uma moral própria que se assiste e que compreende esse grupo, onde gêneros e posturas se misturam e se permitem transladar com alguma liberdade em torno dos sexos sem que isso se torne símbolo de devassidão ou qualquer coisa do tipo.
A diversão e a graça são outras potencias dessa manifestação e a dança tem um papel importante para essa configuração. A gozação e a risada, para além dos passos ritmados, detonam uma abertura para a possibilidade de se reestruturar a dinâmica dos movimentos corporais e assumir, a qualquer custo, a sua forma de conduzir a si mesmo. Se ri do outro, se ri de si, dança-se sem medo de errar, até, em alguns momentos, objetivando a graça e o erro. Cada corpo e cada intenção chama atenção para si com as armas que tem: uns com o sexo e com a destreza da dança e outros com a graça e a paródia. E o “Passinho”, dança do funk que mistura elementos do kuduro africano, do frevo, do break e de outras danças, é o representante mais potente dessa mistura entre o bobo e o sensual, entre a graça e a destreza, e, além disso, é o representante da força pulsante, vital e criativa que possui, e é possuída pela, a cultura funk.

Nasce, então, talvez da forma com que se configuram os corpos nos bailes, misturada com a forma de manifestação dos poderes (machistas ou não) na estrutura social, com uma pitada forte de reformulação moral da noção de corpo, além da carência de estima de um povo que sofre as dores de uma sociedade fragmentada e cruel nas suas desigualdades, o apego material que ficou bastante visível no funk nessa última década. Fora do baile as letras começaram a refletir o jogo do status e do sexo dentro dele e, com isso, expandiu-se a lógica interna desse gueto para as outras culturas da cidade, criando embates conceituais sobre as posições, os valores e as ilusões existentes.

O funk ostentação, o funk “putaria”, a mulher no funk e certas lógicas machistas para quem observa de fora começaram a eternizar no funk, e no funkeiro, em relação às culturas que se sobrepõem à cultura da periferia, uma carência por igualização entre essas culturas, não uma equalização das mesmas, mas uma simples troca do que é sempre visto como o "bom", o "sucesso". O funkeiro agora quer ter e ser, ou mesmo parecer com um mafioso, um burguês, ou até mesmo um rapper americano (crias da periferia de uma outra realidade), um milionário, um super-homem de autoestima inabalável e cercado por mulheres que o desejam e as funkeiras objetivam em suas letras o jogo da sedução, onde elas são “gostosas”, “cachorras”, "poderosas" e escolhem os seus homens, roubam os homens das outras, mas, com isso, se veem sempre sobre a perspectiva do desejo do homem e não percebem a força de seu próprio desejo. Sem, desde já, traçar nenhum juízo de valor, o funk, a partir da demanda da carência de homens e mulheres, se aproxima do universo particular da cultura “Hip pop” americana, inclusive nos seus ícones que se distanciaram da origem de contestação social do Hip hop para a questão do status social, das posses e dos prazeres imediatos. O que, mesmo sem discutir e explicitar o mundo de explorações onde vivem os funkeiros, não deixa de refletir as particularidades dessa identidade cultural e as carências incutidas pelo mercado de consumo.

Destinos, trajetos e objetivos a parte, um grupo de MC’s permanece arraigado a um tipo de funk que para a mídia ficou no passado; para alguns funkeiros ficou na memória e para outros só fazem parte da história; um tipo de funk que pode ser que não seja interessante hoje em dia para a indústria cultural; pode ser que não se adequem a massificação, ou às demandas insurgentes da nova classe media brasileira e pode até ser que sejam os mais combatidos, convenientemente, pela força do poder do Estado: o funk de protesto. Nomes como MC Leonardo, MC Júnior, MC Cidinho, MC Doca entre outros, que frequentavam as rádios e televisões na década de 90, hoje formam uma espécie de resistência. Não uma resistência de força já que não há um combate direto ao funk de protesto, mas uma resistência justamente ao poder da mídia que os suprime e os tenta calar e apagar, que tenta fazer do funk uma manifestação com uma só via, a via contemporânea da “sexualização” e da ostentação, excetuando-se, é claro, o funk melódico onde a temática do amor permanece intacta e o funk galhofa onde o humor é a principal intenção.
Então seriam esses funkeiros ligados culturalmente pela resistência que representam? Pela simples contestação social de suas letras? Pela sua alternatividade perante o mundo mercantilizado e pela sua independência da mídia? Esses são fatores de grande importância nessa delimitação da cultura do funk de protesto, mas, mais do que isso, o que liga cada um desses MC’s é a posição e a consciência social e política dentro e fora das suas comunidades. É muito fácil dizer “Tá tudo errado”, como o MC Leonardo e o MC Junior indicam na letra de sua música homônima, porém o MC Leonardo, por exemplo, representa um ícone político, não só por sua história político-partidária no Psol, mas por sua história de luta pelo funk, pela sua comunidade e pela igualdade de condições. A cultura do funk de contestação se liga, então, pela prática e pela luta na construção, ou melhor, para usar um conceito derridiano, na “descontrução” da sociedade com a formulação, por exemplo, de movimentos como a APAFunk[2] , na elaboração de leis como a “Lei Funk é Cultura (Lei 5543/2009)” e em tantas outras bandeiras que levantam esses funkeiros.
Muitos desses funkeiros sofrem e sofreram perseguições dos aparatos de controle do estado; autuados, presos e fichados pelo crime de apologia ao narcotráfico. Onde as suas músicas, que refletiam a vida do jovem marginalizado, acabaram por sentencia-los culpados de toda a exploração que se sofre nas favelas. As suas roupas, perto dos funkeiros da mídia, são bem mais simples, traço que indica que a consciência de suas posições sociais avança para a vestimenta. Claro que a roupa não foge completamente do padrão funkeiro, sobretudo daquele funkeiro da década de 90. O boné, o bermudão e a camisa larga ainda regem o estilo. Mas se engana quem pensa que esse grupo de funkeiros compreende uma faixa etária só, que só mesmo os velhos Cidinho, Doca, Junior, Leonardo..., levam essas letras de protestos. O funk de protesto se renova a cada ano - como na voz do jovem MC de São Gonçalo, PH Lima do funk (Bandido do Rio) -, ainda que perseguido e marginalizado pelos governantes, renegado pela mídia, se renova forte no peito do jovem que busca uma identificação conjunta a partir de sua própria e difícil realidade.

O funk, sendo de protesto ou não, é já uma crítica social, pois expõe uma cultura que cotidianamente é assolapada pelas questões prévias da elite social, mas o funk, para além das estruturas sociais demonstra que a cultura se impõe e se expande para o outro, tanto como moda, como dança, como forma de corpo, como ritmo, como olhar, como som..., e ao funk de protesto cabe ser a voz que diz “a real” e chega aos ouvidos atentos.

Mas não me bate doutor
Pois eu sou de batalha
E acho que o senhor
Está cometendo falha
Se dançamos funk
É por que somos funkeiros
Da favela carioca
Flamenguistas, brasileiros

Apanhei do meu pai
Apanhei da vida
Apanhei da policia
Apanhei da mídia
Quem bate se acha certo
Quem apanha está errado
Mas nem sempre meu
Senhor as coisas vão por
Este lado, violência só
Gera violência irmão
Quero paz, quero festa
O funk é do povão
Já cansei de ser visto com
Discriminação
Lá na comunidade funk
É diversão, hoje tô na parede
Ganhando uma geral
Se eu cantasse outro estilo isto
Não seria igual.
(Não me bate doutor - Cidinho e Doca).






André Vargas 




Letras em http://letras.mus.br
Estética funk http://www.riobailefunk.net/




[1] Arte e “Povo”. Texto de Francisco Bosco para a sua coluna do jornal O Globo em maio de 2013, onde o escrutor fala da relação do funk e da dança “passinho” como questões dionisíacas, transcendentais e não contemplativas e “conteudísticas”.
[2] A APAFunk foi fundada em 10 de dezembro de 2008, por profissionais e amigos do funk cansados de assistir à discriminação sem fazer nada. O intuito é defender os direitos dos funkeiros e lutar pela Cultura Funk, contra o preconceito e a criminalização. Para isso, a Associação promove debates na sociedade sobre a situação dos artistas do funk, bem como atividades de conscientização dos funkeiros sobre seus direitos. Rodas de funk, palestras e videos são alguns instrumentos utilizados pela associação para levar a mensagem da Associação para universidades, escolas, cadeias, favelas, praças, ruas e todas as instituições da sociedade que abram espaço para debater a nossa cultura.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O meu olhar manifesto

Eu nunca fui um sujeito engajado, na prática, em causas políticas. Tenho, inclusive, muitas ressalvas aos partidos, às legendas e a cegueira das doutrinas partidárias que não sustêm uma autocrítica construtiva ou uma possibilidade dialética de renovação, ou melhor, de desconstrução de seus saberes. Mas, sempre nutri meus pensamentos sociais críticos com leituras e tessitura de textos que acabam por refletir, além da minha aporia prática (minha ausência em passeatas, manifestos e protestos) a minha hiperatividade e o meu incomodo criativo político-social (meu olhar sobre as questões comunitárias ao redor).

Porém, sinto uma sede imensa de me manifestar, quando uma causa me toca por sua inequívoca pluralidade: abarcando todas as classes e posicionamentos políticos; causas que tratam do bem comum mais perceptível; causas que deveriam nos unir, pois refletem no que todos nós sofremos; causas como a do manifesto que participei hoje, contra o aumento abusivo das passagens no transporte público.

Na semana passada, ao ver as manifestações de São Paulo pela mesma causa, comecei a me questionar sobre a postura do carioca diante dos abusos nas tarifas, e seus aumentos, cobradas sobre qualquer produto, tornando o Rio de Janeiro uma das cidades mais caras do mundo, e pensei em todos os clichês de estigma carioca para poder responder à uma possível inércia do povo. Mas comecei a ver pelo facebook uma movimentação de agrupamento e manifestação contra o aumento das passagens que prometia juntar muitas pessoas que, como eu, não aguentam mais os descasos sofridos e conseguem sair do trauma da violência da exploração de seus trabalhos e estudos para poder criticar os rumos da nossa sociedade.

De pronto aceitei me juntar a esse “ato unificado”, já sabendo que lá estariam os partidos de sempre, os gritos de ordem de sempre e a cara de sempre, não a cara do povo - pois esse ainda não consegue escapar do trauma da violência da exploração de suas vidas, já que havemos de ter, para isso, uma força extra, a força da consciência social-, mas a cara do jovem de classe-média engajado e politizado, que fazem parte de uma microelite ideológica (eu era, lá, mais um com essa cara).

Não gosto de muvucas, aglomerações ou qualquer dez pessoas, sinto que grupos tendem a criar descontroladamente um pensamento devastador de uma hora para outra, pautados na coragem que passam a possuir os indivíduos coletivizados e massificados. Um grupo passa a pensar por si e o pensamento individual acaba por escapar. Gosto de manter minhas escolhas intactas. Mas lá estava eu com vergonha de gritar, de pular, de bater palmas, mas indubitavelmente presente e ciente da força do ato de protesto.

Tremulavam bandeiras de partidos e retumbavam vozes juvenis nos megafones e microfones, algumas caras percorri em busca de uma companhia conhecida, alguns conhecidos, mas ainda não me deixo chamar de “companheiro” qualquer que seja a criatura.

O ódio, e o desejo de combate masoquista já estavam estampados no rosto dos policiais que cercavam a movimentação, falavam e pensavam entre eles as atrocidades que fariam com aquele bando. Deglutidos e digeridos, como estão, pela doutrina lógica do estado forte de repressão, preparavam suas armas para combater a baderna.

Partimos da Cinelândia, onde nos reunimos em frente à Câmara municipal dos vereadores, para a Rua Araujo Porto Alegre rumando para a Rua Primeiro de Março. Parando, vez por outra, em frente aos prédios emblemáticos do paradoxo da justiça na cidade e no estado de onde pude ver tudo com clareza, apesar de estarmos em, mais ou menos, trezentos manifestantes para a mídia e seiscentos para os manifestantes. Eu estava andando pela calçada cômoda e investigativamente.  Não havia imprensa ao lado, noticiando a manifestação, muitos fleches salpicavam de fagulhas os olhos, mas eles eram nossos, éramos nós a registrar os nossos momentos. A ausência da imprensa e a predisposição da PM me fizeram calcular a obviedade: qualquer pequeno estranhamento transbordaria o caldo da pacificidade. Uma agonia me tomou quando um punk anarquizou a bandeira nacional e a pôs em fogo, percebi ali que uma parcela bem pequena estava disposta ao conflito tanto quanto os policiais.

E eis que, chegando à Primeiro de Março, os PMs prendem um daqueles punks que atearam fogo à bandeira. As pessoas recuaram do caminho do protesto e clamaram por justiça quando viram o rapaz sendo detido. Era a deixa que a policia precisava para começar o que previra desde que ouviu o brado “Acabou o amor, isso aqui vai virar Turquia!”. Aproximadamente cinquenta homens do batalhão do choque e uns tantos PMs com suas bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, cassetetes e spray de pimenta..., açoitavam a todos que lá estavam. Junto com a truculência se seguiam injúrias “Vagabundo!”, “Sai daqui, cachorra” numa obra de horror vivo e vertiginoso... Os gases eram espirrados a uma distância ínfima dos olhos das pessoas que estavam nas calçadas e que, às vezes, nem parte da manifestação eles faziam.

Os manifestantes não conseguiram se reunir novamente. A polícia dispersava, ainda com truculência temperada com pimenta, qualquer reunião, inclusive para pegar (e pagar a R$ 2,95) o ônibus.
Eu nunca tinha sentido antes o efeito do spray de pimenta, mas posso dizer agora, de onde eu estava a ver, que a minha vontade de chorar se deu mais pela forma como tentam nos calar do que pela irritação nos olhos. O mais gozado é perceber que o policial também paga a passagem e, talvez, também a acha injusta, mas ele não consegue perceber a comunidade desse grito, desse gesto e nem tão perto do nosso tempo fará o que bem devia: juntar-se e lutar do lado certo.

Ficou claro para mim que muitas coisas, infelizmente, não mudaram nos movimentos estudantis, partidários, esquerdistas..., inclusive, o que já falei, e que talvez seja o pior dos indícios, a nossa cara de elite. Mas também ficou claro para mim o quanto os nossos brados são inconsequentes e infantis; o quanto nossas ideias de manifestações são fórmulas copiadas de outros lugares. Ficou claro que um ato unificado, que seja, tem que ser organizado para que pequenos grupos não fujam do tema e se inflem sobremaneira e, mais do que isso, ficou insuportavelmente claro, para mim, que não temos a noção de povo que devíamos, a noção de que somos um só e único povo, mas, sim, destacamos o carioca ordinário que quer voltar para casa, ver novela e descansar - que quer esquecer o trabalho do dia-à-dia, e para quem qualquer pensamento crítico é coisa de vagabundo, desses mesmos “vagabundos” (que logo somos),  que deviam agir numa mudança de consciência desse ser-senso-comum massificado e explorado, mas, pelo contrário, se fecham na crueza de uma ideologia do bem comum presa a elite esclarecida e burguesa para poder criticar a ignorância do restante.

Sobre a polícia, só posso concordar com o nosso filósofo Vladimir Safatle que escreveu o artigo na Folha de São Paulo “Pela extinção da PM” e rezar para que um dia isso ocorra. Sobre a imprensa, só posso dizer que a ausência da imprensa foi cômoda, pois ela pôde depois dizer o que, alias, já disse: “Ninguém sabe quem começou o confronto” - eu sei. Sobre o prefeito Eduardo Paes, eu só espero que ele cumpra o combinado se o Brasil perder a copa para a Argentina e sobre o transporte, eu vou continuar criticando, suas tarifas e serviços, mesmo que eu seja obrigado a usar, e me calar por instantes coléricos, do mesmo.


André Vargas

terça-feira, 21 de maio de 2013

A Tarsila é popular! – Didatismo na história da arte e senso comum



Antes de tudo é preciso que eu localize o princípio desse meu texto. Estou trabalhando ao lado de figuras ilustres da nossa arte brasileira, como Tarsila, Pancetti, Di Cavalcante, Hélio Oiticica, entre outros, no Museu de Arte do Rio, e convivo com a opinião do "público" sobre eles.

A popularidade, como sabemos, exibe muitas facetas e nem todas elas são saudáveis. Com a popularidade, por exemplo, no que se destina a arte, vem o senso comum, as doutrinas e os discursos da industria cultural e a proximidade de uma massificação da própria arte, como bem dizia Walter Benjamim: "o fim da aura". Portanto é de suma importância relativizar e criticar os "avanços" que os mecanismos impõem, de qualquer tipo de arte, sobre o povo. Devemos muito dessa popularização à educação, ou melhor, ao didatismo da arte nas escolas, o que é um grande passo para construção de um povo forte e consciente, porém com seus problemas, devido às brevidades das abordagens.

É bom ver que todo mundo, ou quase todo mundo, reconhece Tarsila do Amaral de longe, sem pestanejar, sem muitas dúvidas (às vezes escorregando em Djaniras e Malfattis), mas realmente são icônicas, emblemáticas, e identitárias a ponto de serem referenciadas pelos brasileiros comuns, as representações dessa artista.
“Uma identidade!” é o que dizem todos que avistam os quadros da “senhora antropofagia”, “Não tem como não saber, é a cara dela!”. De fato os quadros dessa etapa tem algo em comum e é mais ou menos um pouco de tudo o que nós conseguimos decifrar: formas arredondadas, despreocupação formal, o uso de cores primárias e vivas, temática que envolve a identidade nacional, a desproporção acentuada, entre outras coisas que se pode enumerar. Mas está em enumerar, que advém da ideia de que temos que nos posicionar como críticos maniqueístas, sabedores do que é bom e ruim, o erro da questão.
De algumas décadas para cá as escolas começaram a trabalhar muito a ideia de o modernismo ser um período artístico no Brasil de “ruptura” com a simples reprodução dos conceitos artísticos estrangeiros, para ser a “reprodução digerida” e seletiva do que é bom, sem esquecer a nossa identidade, identidade esta que se pautaria exatamente nesse digerir, como o canibalismo (antropofagia) de algumas tribos de nossos “povos originários”, os indígenas, sugere; reforçando, assim, um símbolo de brasilidade, já preexistente nas formulações ideológicas do movimento, introduzindo alunos e professores brevemente nessa história tão cheia de pormenores e contextos. Outras formas de propaganda de fixação foram também parte responsável, na criação desse discurso opinativo e de gosto que se formou, especificamente, pelos quadros de Tarsila, como o uso de suas pinturas em contracapas de cartilhas escolares e etc.
A reboque dessa identificação, desse reconhecimento, tanto de crianças, como de jovens e adultos, está, contudo, aquilo que a escola consegue fazer melhor hoje em dia: criar e fortalecer o senso comum. Melhor dizendo, ainda que se tenha o reconhecimento que se merece, a arte da Tarsila é vista de maneira técnica pelas pessoas que a reconhecem e o primeiro sintoma dessa tecnicidade é a opinião.
Quando me refiro a “maneira técnica” quero exemplificar um olhar que Heidegger enunciou como um sinal dos nossos tempos modernos, um olhar que pretende prever o que se pode ganhar em tudo o que há no mundo, o que serve e o que não serve, inclusive na arte. De modo que essa maneira técnica de ver a arte só percebe o que a arte não é: alvo. Sendo assim é um olhar breve e nebuloso que se experimenta.

A opinião negativa

Talvez essa seja o sintoma mais perceptível, pelo menos no que tange ao senso comum tecnicista. Torcer o nariz, dizer que não gosta do “estilo” dessa pintora, achar que ela não sabia pintar, que qualquer um pode fazer igual, ou mesmo que a Tarsila pintava como uma criança..., exemplificam a forma brutal de suspender o contato com a arte exibida e se sustentar na sua própria ignorância. Todos podemos dizer que gostamos e que não gostamos de qualquer coisa, mas daí a dizer que tal pessoa não sabia pintar é ignorar a história dessa pessoa, e desconhecer cegamente aquela artista enquanto tal. Dizer que é fácil fazer é desconhecer o oficio de pintar. Na prática nunca é fácil. Dizer que ela pintava como uma criança é desconhecer totalmente o movimento e as ideias envolvidas. De toda a forma é ignorar a artista. Mas a arte é a que mais escapa nesses quesitos estáticos, pois o contato já ficou diluído por preocupações técnicas que nem sequer se sustentam na critica ao artista (algo menor, na minha singela opinião, do que a arte).


André Vargas

domingo, 12 de maio de 2013

“O funk não é contemplativo, é dionisíaco” – O trajeto da bala perdida cultural: As mensagens, as entrelinhas e a dança



Eu venho pensando muito sobre o funk de uns tempos para cá. Na verdade, eu sempre gostei de ficar antenado às novidade e até de antecipar quais seriam as musicas mais tocadas nas festas de quinze anos e nas formaturas de colégio, porém venho, por esses tempos, pensando no papel crítico, ou melhor, naquilo que se insere o funk como cultura e como traço óbvio de nossa identidade sociocultural; naquilo  que indica o funk como uma chaga exposta das segregações sociais e, ao mesmo tempo, uma arte com capacidades múltiplas e muitas ainda não exploradas. Tenho pensado, com isso, na relevância de algumas mensagens, nos símbolos que estamos criando de “resistência” ou de "conformidade" e até mesmo - papel bem menos nobre e divertido do que antecipar tendências de bailes - tenho pensado no que e no por que das coisas que pessoas, como eu, pensam ao ouvir funk ou ouvir falar de funk.
Já não se faz mais necessário especificar aqui no Brasil, sobretudo no Rio de janeiro, de que funk estou falando, ainda mais quando digo que esse estilo musical ainda sofre algumas barreiras estigmatizastes, tanto da crítica – seja ela elitista ou pseudo-pop – quanto do próprio funkeiro. Enquanto o estigma da crítica, geralmente explicita um preconceito social secular deixando, assim, de ver o lado hierarquicamente ruinoso da cultura, ou relativizam de forma inocente os conteúdos na tentativa de tornar as mensagens emblemas de algum pressuposto teórico da própria elite; o estigma da do funkeiro está nos símbolos adotados de poder, nos devaneios ostentosos do capital, nas referências esdrúxulas à cultura pop norte-americana, ou seja, está exatamente naquilo que o oprime. Desse modo é o próprio recalque do funk, que faz com que o seu alcance seja, em alguns âmbitos, interrompido ou diluído.
Não é difícil perceber que a mácula da ostentação de um status social ilusório, transitório e, por vezes inexistente, como o Poder sobre o outro sexo a partir do dinheiro, de posses ou de qualidades pessoais especiais como a pró-atividade sexual, apesar de serem demonstrações de um tipo de construção de autoestima de um povo que sofre com a desvalorização desses ícones, são caminhos que só dizem a favor da máquina opressora e são, ainda, caminhos que criam em torno de si um sentido lógico nessa sociedade exatamente enquanto doutrinam e iludem os que se intitulam como tais. E o que se deveria perceber é que estes são verdadeiros exemplos do quanto está exaurido de ideias claras sobre si a população mais explorada e carente de estima.
“Sou foda!”

Assim, parece presumível que se diga que há muito mais contexto no que o funk não diz do que no que ele diz, melhor dizendo, a exata antítese das suas letras revela muito mais sobre a realidade do que os símbolos de poder que ela propaga: seus carros importados, suas mulheres lascivas e voluptuosas, suas lanchas, seu desempenho sexual, seus amigos fieis, e sua grana infinita, dão lugar às dezenas de prestações de um carro popular, suas aventuras amorosas, cada vez mais breves e superficiais, seus amigos comuns e sua bufunfa módica e suada, quando há. Mas esses – apesar de serem muito constantes, ainda mais porque a indústria cultural se apossou da produção, e forçadamente reproduziu essa ideologia de sucesso à exaustão, de forma que isso acabou inoculado quase que totalmente no ideário popular – são casos específicos dentro de uma multiplicidade gigantesca que se pauta no eterno por vir dessa história.
Temos que mencionar o papel importante de MC’s como MC Leonardo, com suas rimas de contestação social como “Ta tudo errado”, que além de politizadas, carregam consigo a mensagem crua e dura da realidade da qual somos apartados em nossos apartamentos. Não dá também para não nos lembrarmos de tantos outros, hoje no ostracismo, mas que ainda são lembrados pelos DJs e pelos dançantes das pistas nas festas e que tiveram papel importante nesse sentido de contestação e de apresentação dessa realidade calada e culpada antecipadamente como Cidinho e Doca entre outros.
Poderíamos falar da parte humorística dos funks ou de muitas outras vertentes atuais e antigas, mas não podemos negar que o giro capital e o status adquirido estão cada vez mais reinando sobre qualquer tipo de mensagem e assim devemos ler o funk nas entrelinhas psicossocial, mais do que no “papo reto que eles vão mandar pa tu”.

De modo inquebrantável o funk é um ritmo único, que bebeu de misturas eletrônicas americanas e batidas afro-brasileiras, de uma forma que se tornou quase um ritual xamã de extravasamento do ser, e essa frase de Francisco Bosco (colunista do jornal O Globo), “O funk não é contemplativo, é dionisíaco”, da qual me apossei para título desse texto, realmente encerra no que o funk é enquanto prática comunitária. Realmente o ritmo é contagiante (claro que de forma benéfica para alguns, enquanto esse mesmo contágio não é bem quisto por outros) e realmente há alguma coisa de dionisíaco no funk. Existe algo que vai para além do que se diz, existe uma manifestação corporal de quase transe, de excitação, de sexualidade e de inspiração ao exagero dos prazeres que é indissociável do funk, e, talvez por ele carregar esse caráter de exuberância dos prazeres da carne é que se possa esperar de tudo do funk. O colunista faz quase uma ode a um recente tipo de dança criado na cultura funk, que como tudo que é da cultura funk, bebeu de culturas diversas e criou uma maneira única de execução: o passinho, e através de sua admiração à estética e a plástica da dança sentenciou que o funk não é contemplativo e sim dionisíaco. Concordo em partes com o Bosco, principalmente quanto à forma prática e à fruição frenética dos dançantes, mas vejo na história do funk e nas mensagens que por vezes ele transmite muito mais de sua importância social. Podemos e devemos ler o funk em todos os seus sentidos.


André Vargas 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Sobre o filme "Meu pé de laranja lima" e a aproximação do sensível



O filme conta uma história de aventuras imaginárias, travessuras e molecagens, de ganhos e perdas pessoais que amadurecem, do personagem Zezé. Amadurecimento que nos é visível durante toda a trama. Um moleque incrivelmente prodigioso, mas com uma profunda carência de afeição que se simboliza bem com a sua lista de amigos que cresce e diminui através das contingencias de sua vida.
No longa-metragem de Marcos Bernstein, roteirista de filmes consagrados como Central do Brasil, assim como no livro base de José Mauro de Vasconcelos (“Meu pé de laranja lima”, 1968), a dor da perda é uma constante e Zezé (João Guilherme Ávila) em sua coleção de amigos experimenta as tristes sensações da impotência humana quanto à efêmera e insegura força da vida: pessoas queridas que vão embora, outras que chegam e até mesmo inimigos que viram a casaca e se tornam nossos melhores amigos. Assim se encaminha o roteiro, nesse melancólico e harmonioso drama comum, que tem como diferencial o ponto de vista da criança, a inocência e o ímpeto de fazer (nem sempre certo) de quem vive uma infância pobre, mas colorida pela imaginação.
O título faz referência a um dos personagens da trama, Minguinho, o pé de laranja lima, que se torna um dos grandes amigos de Zezé e demonstra, mais uma vez, o grande poder criativo do garoto, que é capaz não só de conversar com a árvore, mas de ouvi-la e de aventurar-se com ela. No filme o personagem Minguinho e sua relação ficam um pouco diminuídos, mas outras sensações e ideias se tornam mais fortes como a crítica a falta de compreensão, de diálogo e de proximidade, entre aquele adulto que pensa que se tem que corrigir as crianças a todo o custo e as crianças que escapam brilhantemente das imposições morais por causa de seu olhar sedento por vida. A poesia das verdades infantis e das intenções mais singelas do garoto, e a sua vontade de se sujeitar, apesar dos pesares, e agradar o outro.
Nessa história de perdas e ganhos, chega-se a um momento em que muitas perdas se sobrepõem e criam um choque catártico, não só no personagem, mas na plateia, obrigando ambos a sentirem tamanha dor que “amadurecer”, se é que isso é realmente bom, parece ser o único caminho, porém o Zezé adulto (interpretado por Caco Ciocler), ao final do filme, mostra que ainda permanece dentro dele o espírito arteiro do menino que foi. Então, a história bate e combate a intransigência e ignorância dos pais coercivos, ao mesmo tempo em que é uma ode a certo tipo de “liberdade” moral, onde podemos dizer que é preciso manter sempre vivo o passarinho que existe dentro de nós. Porém é perceptível que a nossa sociedade está em curso para que uma história de amizade entre uma criança e um adulto seja fruto de julgamentos diversos e, por horas, perversos. Nessa história, há uma relação “secreta” de amizade e de amor entre um garoto (Zezé) e um adulto (Portuga - José de Abreu) e não é difícil imaginar pessoas criando e rotulando questões éticas na mesma. Porém a trama desmistifica essas questões do velho e bom “não fale com estranhos” e traz a ternura mais verdadeira que possa existir entre dois seres humanos, de forma tão completa que julga-los mal parece ser o maior de todos os crimes. A relação entre eles é o primeiro contato afetuoso que o garoto conhece e, talvez, o último do adulto, marcando, assim, os personagens polarizados (velho-moço) como iguais; um detonando no outro, emoções que os ligarão para sempre. 

“Meu pé de laranja lima” é poético, profundamente simples e detona uma dor marcada e vertiginosa, como passos de quem corre em direção aos trilhos de um trem que se aproxima, além de transbordar uma ternura óbvia em quem o assiste, que consiste no ato de identificar-se, na compaixão. É um filme onde se pode perceber com graça a mão do diretor em imagens poéticas importantes como a sombra do pai – o pai como uma sombra de homem -, no momento em que o pai rouba-lhe o dinheiro ganhado escondido; as imagens afeições deformadas dos rostos nos atos violentos do Portuga, do pai e do próprio Zezé e nas transições de cenas. É, ainda, um filme para quem consegue ver a beleza e a importância que há na tristeza, na pobreza, mas, sobretudo, naquilo que suplanta (e talvez daí brote, como uma árvore num terreiro velho) tais situações: o amor e a fantasia. Tecnicamente, os atores trazem a carga perfeita de intimidade; a trilha, a fotografia e a montagem são primorosas, portanto, é um deleite artístico-experiencial, além de tudo o que o roteiro deflagra em nós em ideias e associações.


André Vargas

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Decifrando Valesca Popuzuda - O abismo do pensamento no relativismo cultural ou onde foi parar o feminismo?

É importante, antes de mais nada, salientar o salutar esforço que hoje se faz para tornar esses limites entre a cultura popular e cultura erudita obsoletos, mas é preciso perceber que esse caminho guarda algumas armadilhas alienantes inesperadas, como a generalização dos sujeitos e dos gostos, a falta de crítica dos gostos e das manifestações, o esgotamento teórico e o discurso vago do rebelde típicos do relativismo cultural.
Relativismo cultural: Há algum tempo essa forma de pensar a cultura me causa cera estranheza, não por ela considerar como importantes (como são) camadas culturais que antes eram subjugadas (e ainda são) e alvos certos de preconceito (idem), há de se admitir tais problemas e de combatê-los com grande afinco, porém não é somente com o combate e com o rompimento dessas estruturas sócio-culturais que nos aparecerão mais claramente os códigos desses seculares desníveis impostos e carregados pelas elites culturais.
De toda a forma a moda pop, carregada com gosto pela classe média e que, assim, acaba mal sustentada em virtude da insegurança identitária, do fetiche que há na alternatividade a todo o custo e da sede de inclusão social da mesma, vem tornando essa disputa mais forte e cega do que deveria esta ser. Tornando aqueles que são contrários a esse pensar alvos de estigmatização intelectual.
Em fatos, minhas críticas já soavam reacionárias aos grandes mártires da cultura pop genérico-generalizada, antes de as birras intelectuais e jornalistico-opinativas, ocasionadas pela notícia de um estudo do Feminismo à partir das letras de Valesca Popozuda ecoarem pelo paraíso mórbido da internet, mas esse tórrido combate me pôs, novamente, em posição fortemente crítica, que, ao que parece, escapa das duas frentes,  da ignorância rompante da jornalista à inocência crítica do estudo.


De modo algum acho que não se deva estudar a cultura pop, ou qualquer manifestação que desse modo cultural tão amplo surja, ainda mais no contexto da arte brasileira: seja Funk, Pagode, Axé, Sertanejo..., o que for. De maneira alguma eu negaria aqui a importância única do popular na nossa identidade e nos nossos afetos. O que discordo é da generalização, ou até, da falta de escrúpulos críticos para se defender uma causa qualquer. As pessoas dizem "O Funk é bom (gosto generalizado) e tem que ser estudado", vamos descriminar um pouco mais as coisas como acho mais verdadeiro em se tratando de cultura, o certo seria dizer "o Funk é importante e tem que ser estudado". Assim, estando o pensamento de acordo com a frase que expus, fica mais visível que temos uma variedade de coisas a serem analisadas que falam "à favor" e "contra" o Funk, e não somente, o que é armadilha típica de nosso tempo, o vago dizer "O Funk é bom" e temos que mostrar que ele é bom custe o que custar.
Não sei se me faço claro, mas é preciso muito cuidado com essas determinações breves de causa para não se perder na hora de escolher um objeto representante. E aqui estamos nós, por causa de uma ruidosa escolha propositalmente polêmica, nessa madrugada, analisando letras da Valesca Popozuda para tentar achar o que se diz ser o feminismo em sua forma contemporânea. Então, destrinchemos alguns trechos coletados que simbolizem de uma forma digna o total da obra da Valesca, para não correr o risco de ser injusto ou ignorante. Não estou querendo, com isso, diminuir a arte, o Funk, ou a Valesca, mas, antes de tudo perceber a incongruência entre o argumento dos defensores de que haja nessas letras alguma coisa da força feminista:



"E aí seu otário
Só porque não conseguiu foder comigo
Agora tu quer ficar me difamando né?
Então se liga no papo
No papo que eu mando

Eu vou te dar um papo 

Vê se para de gracinha
Eu dou pra quem quiser
Que a porra da buceta é minha"
(A porra da buceta é minha)

Acho que é nesta música que reside a maior dificuldade, ou melhor, a maior tendência, ao se destacar um comportamento de poder sobre o outro sexo e de intimidade com o seu próprio, como feminismo, mas percebamos que não é exatamente no domínio (que antes era do sexo oposto) do outro que está a intenção equânime da luta feminista. Essa música mais me parece uma resposta afetada e ofensiva de uma mulher que foi ofendida igualmente. Se for essa a igualdade: igualdade de peso de resposta, que se trata o feminismo contemporâneo, aí está a letra-hino! Mas acredito que a luta feminina não é para responder ao homem como homem, mas, sim, para exercer o feminino sem problemas, sem julgamentos, sem subordinações ou estigmas. E ser livre sexualmente, não é exercer o feminino tampouco e sim exercer a humanidade, logo, afirmar fazer sexo com quem quiser, apesar de ser uma vitória perto da mulher de séculos passados, de longe não significa absolutamente a luta feminista em seu complexo e difícil caminho.

"Você quer o meu corpo
Você quer minha buceta
ou você prefere que eu te toque uma punheta?
Você quer o meu corpo
Você quer minha buceta
ou você prefere que eu te toque uma punheta?"
(Solta essa porra)


A expressão "mulher-objeto" já está basante batida e utilizá-la acaba parecendo machista, pois trata-se do conceito masculinizado do que deve ser a mulher moral e eticamente. De jeito nenhum a liberdade sexual deve ser reprimida por quem quer que seja, mas temos que perceber no que a nossa liberdade acaba por nos aprisionar justamente no que nos desvencilhamos. É importante notar, não como moral, mas como questão feminista, que o sexo como ruptura é só um passo que, concordo, deve ser desmitificado e dessacralizado, mas não, objetado no desejo masculino, deve ser assumido como identidade feminina, pois assim já fazem os machistas. Logo, essa postura é a liberdade sendo usada para voltar para a prisão do que é comum na sociedade machista. Nada de novo surge quando a mulher se objeta no desejo do homem interessado por sexo, ao menos não enquanto o homem ainda estiver acostumado culturalmente com essa proposta, que, por ventura, ele mesmo criou.



"Amante meu papo é reto, comigo tenta quem pode, a sorte está lançada, se não gostou me engole.

Ô fiel, recalcada, o melhor é ser amante enquanto eu como seu marido tu se acaba lá no tanque, lava passa e cozinha, faz tudo direitinho, e só pra te deixar bolada eu tô comendo seu marido, eu tô comendo o seu marido.

Se não gosto, me engole. Eu tô comendo o seu marido, se não gostou me engole, eu tô comendo seu marido .."
(Amante X Fiel)

"vou te dar um papo reto
é melhor ficar ligado
não deu conta do marido
vai rolar a cachorrada
e se marcar eu como mesmo
não deu conta eu como mesmo
tu ta marcando eu como mesmo"
(Se marcar eu como mesmo)

Já essa duas músicas caberiam em uma outra crítica, esta destinada a mídia que tenta naturalizar a traição masculina e isso já aparece como constante em algumas novelas, onde se cria uma relação humorística entre as personagens resignados das mulheres e um relação de coitado dividido do homem que acabam por levar a aceitação do público daquele sujeito que mente, omite e engana e também leva ao ideário do publico feminino ordinário a relação romanceada de estar nessa situação, onde a recíproca, ou seja, se ela mesma trair, não será verdadeira e aceita. Não há, como podia, uma lição sobre a monogamia, ou sobre as formas de se viver o corpo, o amor e as vontades com verdade e possibilidades para ambas as partes, mas se propaga a mentira do homem como certo gracejo e certo charme enquanto essa possibilidade geralmente é negada à mulher. Não consigo ver feminismo ai também! E nessas músicas também é perceptível que se quer dar um poder à amante que ela na realidade não tem, pois ela se contenta em ser o sexo do jogo, onde o sexo surge como a parte mais importante... difícil questão, mas tendo a entender como recalque afetivo nos contextos atuais.

"Eu vou pro baile procurar o meu negão,
Vou subir no palco ao som do tamborzão,
Sou cachorrona mesmo
E late que eu vou passar
Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar"
(Sem calcinha)

Não consigo ver, apesar de estar me esforçando, nada além do sexo, da sexualidade, do status sexual, do "poder" do sexo, sendo exposto, o que não nego possa dar a noção a alguém de independência sexual, mas psicologicamente essa independência se assemelha a carência afetiva e recalque, não sei delimitar bem essas questões, mas não caio na esparrela de creditar verdadeiro poder, além do entretenimento e da catarse de séculos de repressão sexual, ao discurso dessa letra.

"Coringa, sem neurosi,
olha essa mulher toda gostosa que tah vindo ali tu conhece
É a Valesca cara aquela feinha da favela
olha como ela ta, como ela ta mó peitão, mó cabelão, mó bundão olha mano
e neguinho essa dai eu vo ataca
Não calma ai que eu vo te mostra como é que faz ai se liga

ÔÔÔ Coringa seu otário para de vacilação. Tu é pouca

areia pro meu caminhão! Agora é diferente, somos nós
mulheres que estamos mandando. Fica de quatro, balança
o rabo, me dá a patinha, bota a linguinha pra fora e
LATE, late seu cachorro.. late que eu to passando!"

O poder da Valesca, nessa música, é atingido depois que ela entra para o padrão de beleza, depois que ela passa ser desejada, dai então ela pode atingir aqueles que atingiam ela. Nada desse poder do corpo, apesar de o corpo também ter sido um ganho da luta feminina, significa a luta, pois a verdadeira luta, o verdadeiro poder seria acabar com os padrões masculinos do corpo e do desejo, seria o lutar por essa autonomia dos desejos e dos interesses e dos sujeitos.



Para terminar coloco aqui a música cujo título foi também utilizado no projeto da "polêmica" pesquisadora:
Na cama faço de tudo 
Sou eu que te dou prazer 
Sou profissional do sexo 
E vou te mostrar por que 

Minha buceta é o poder 

Minha buceta é o poder 

Mulher burra fica pobre 

Mass eu vou te dizer 
Se for inteligente pode até enriquecer 

Minha buceta é o poder 

Minha buceta é o poder 

Por ela o homem chora 

Por ela o homem gasta 
Por ela o homem mata 
Por ela o homem enlouquece 

Dá carro, apartamento, jóias, roupas e mansão 

Coloca silicone 
E faz lipoaspiração 
Implante no cabelo com rostinho de atriz 
Aumenta a sua bunda pra você ficar feliz 

Você que não conhece eu apresento pra você 

Sabe de quem tô falando? 

Minha buceta é o poder 

Minha buceta é o poder 

Mulher burra fica pobre 

Mas eu vou te dizer 
Se for inteligente pode até enriquecer 

Minha buceta é o poder 


Rasta no chão, rasta no chão, rasta que rasta que rasta... 


Por ela o homem chora 

Por ela o homem gasta 
Por ela o homem mata 
Por ela o homem enlouquece 

Dá carro, apartamento, jóias, roupas e mansão 

Coloca silicone 
E faz lipoaspiração 
Implante no cabelo com rostinho de atriz 
Aumenta a sua bunda pra você ficar feliz 

Você que não conhece eu apresento pra você 

Sabe de quem tô falando? 

Minha buceta é o poder 

Minha buceta é o poder 

Mulher burra fica pobre 

Mas eu vou te dizer 
Se for inteligente pode até enriquecer 

Minha buceta é o poder 

Minha buceta é o poder 

Rasta no chão, rasta no chão, rasta que rasta que rasta que rasta no chão...
(Minha buceta é o poder)

Por três frases cai-se na pachorra de se transferir caráter feminista a Valesca: "Mulher burra fica pobre /Mas eu vou te dizer /Se for inteligente pode até enriquecer", não se enganem, essa inteligência indicada é relacionada a como a mulher trata o seu sexo e nada mais!

Dessas questões é que tiro a dúvida se há mesmo critério sobre o objeto que se escolhe, não o Funk, mas a especificidade de relacionar Valesca ao feminismo, a não ser que se faça essa relação para dizer que ali, na verdade, não o há. De toda a forma a academia está criando teóricos cada vez mais relativistas para combater a sua própria estrutura elitista, mas cada vez mais inseguros e acríticos quanto ao seu próprio objeto e que, assim ladram, mas não mordem no ímpeto de trazer a tona os limites acadêmicos e a cultura popular e, dessa forma, não se rompe com nenhuma estrutura.



André Vargas