quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Para além dos batuques, a letra



Sobre a música "Banditismo por uma questão de classe"
(Chico Science)



Há algum tempo atrás parei para perceber as letras de Chico Science. Confesso que, antes disso, eu me deixava levar por um surto dionisíaco ao ouvir as músicas e, ao ritmo da batucada, eu era completamente conduzido pelo som.
A mensagem sempre passou por mim, até mesmo quando eu a cantava, sem que eu a percebesse. Mas, um dia, mais calmo e interessado, pude pensar Chico Science, além de o sentir.
As letras das músicas, assim como o próprio movimento manguebeat, são perfeitas insinuações das críticas possíveis sobre o sistema de exclusões, além das estruturas socioculturais e as estâncias nas quais essas estruturas são formatadas. Misturando rap com maracatu e outros ritmos brasileiros, o movimento não procurava somente uma identidade para a cultura dentro do contexto nacional, mas procurava dar voz à periferia nordestina de maneira mais direta, portanto, as letras caminham nessa direção, a direção do confronto com os paradigmas e preconceitos culturais existentes.
Das letras que parei para pereceber “Banditismo por uma questão de classe” me chama a atenção pela amplitude dos seus conteúdos, que não ficam, somente, no tabefe da superfície de suas frases jogadas, mas nos faz pensar no além, nos limites entre herói e bandido, o que faz o bandido ser bandido e que culpa nós temos nessa história.
Resolvi, então, escrever, para que eu mesmo não me esqueça das coisas que pensei ao reler e reouvir a musica centenas de vezes apos ter ouvido a primeira vez. Compartilho, então, as minhas visões sobre esses temas, para, quem sabe, encontrar algum eco no próprio sistema.



“... Há um tempo atrás se falava de bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução

Há um tempo atrás se falava e progresso

Há um tempo atrás que eu via televisão...”
O passado reflete o presente de forma concreta nessa passagem da música de Science. É perceptível que essa estrofe indica que as noções de solução presenciadas e equalizadas no presente se esgotaram, pois o princípio (enquanto passado) já estava condenado por si mesmo ao fracasso. Já que, mesmo que se fale sobre tudo, a atividade dos sujeitos permanece nula e distraída pela “cultura de massa”. O paralelismo sugerido pela repetição da frase “Há um tempo atrás” indica que os finais das frases fincam como estacas o presente contundente e contraditório, e a falha do discurso entre o que se fala e o que se vê e faz, se sustenta de maneira franca e direta na inércia inocente do próprio “eu”, posto que na última frase da estrofe a televisão, veículo de massa tantas vezes abordado e criticado por teóricos como Adorno e Walter Benjamin, assume o seu papel de gerador de ilusões de conforto e alienações: enquanto se fala dos “problemas”, das soluções, e do caminho da correção (progresso), os milhares de “eus” veem televisão e sossegam.



“... Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda

Biu do olho verde fazia sexo, fazia

Fazia sexo com seu alicate...”.
A primeira vista parece que se trata, nesse trecho, de uma espécie de aleatoriedades insignificantes que indicariam os conteúdos rasos do veículo televisivo, que, por sua vez, expõe preocupações tolas e apelos sensíveis e sexuais presas ao medo e ao desejo carnal próprio do humano. Pesquisando não é exatamente isso, mas continua sendo, sim, uma crítica do modelo televisivo que cria moldes de bandidos e mocinhos, que muitas vezes se misturam de maneira quase “osmózica” e por isso são acusados justa e injustamente – difícil acertar – de propagar algum tipo de lei de status de poder que torna essa caminho um caminho não só possível como brilhante. Pois Biu do olho verde e Galeguinho do Coque, eram bandidos famosos no nordeste e que tinham todo um aparato de construção de imagem midiática e um apelo sensacionalista em volta de sua aura.
“Biu do Olho Verde, um jovem de 17 anos, nascido nos Bultrins, periferia de Olinda, além de assaltante era torturador, gostava de submeter suas vítimas – na grande maioria, mulheres – a torturas que deixariam os roteiristas de “Jogos Mortais” no chinelo. Uma das histórias que contam sobre ele diz que, depois de assaltar uma mulher ele perguntou: “quer levar um tiro ou um beliscão?”Logicamente, aterrorizada pela possibilidade de ser baleada, a mulher optou por um beliscão. Ele, então, sacou de um alicate e arrancou os mamilos dos dois seios da mulher, que ficou agonizando de dor. O radialista Jota Ferreira, que fazia muito sucesso na época com um programa no rádio e na tevê chamado “Blitz, Ação Policial”, declarou ter-se encontrado com Biu do Olho Verde e que o mesmo desmentira todas as histórias envolvendo torturas com alicate. Em seu blog, Jota publicou uma declaração, atribuída ao bandido, que teria sido dada num encontro que os dois tiveram na década de 80:

“Jota, eu não sou 'fulêro'. Sou macho e esses cabras da Polícia são tudo maricas, 'tendeu'?...Num adianta, 'véi', tu ficar me xeretando porque tu não vai 'arrumá' nada, sacou? Num sei nem que danado é um alicate de unha, porra..! Nunca ameacei ninguém de beliscar os peitos se não me der dinheiro, 'tendeu'? Agora, já mandei uns cinco pro inferno, tá ligado?. Eu gosto de dinheiro e 'mulé'... e tem que ser boa, visse? 'Mulé' merda eu nem paro..! Pergunta às 'mulé' se eu maltratei alguma delas..!”.” (Jorlia do Ed).

É inegável que se construiu uma forma-enredo que se incorporou a histórias de herói, mas que, com artimanha, o herói não precisa mais ser necessariamente bom, ético e honesto. Os padrões sociais, sendo rompidos, para uma sociedade autoritária e bruta, já faz com que se reconheça o valor desse herói “avessado”. Mas não discutiremos a necessidade de se criar padrões de heróis que rompam com a questão ética, ou que se aproximem de um “humano, demasiado humano”, portanto falho, portanto comum. A questão da música é que a forma com que a TV e outros veículos de mídia monta seus “bandidos-heróis” se adéqua a demanda por ícones que a comunidade já possui, e nisso se valem.
“Galeguinho do Coque”, que nasceu “Everaldo Belo da Silva”, começou a praticar pequenos furtos ainda adolescente. Assim como Biu, ele era diferente do esterótipo dos meninos de rua incutido na mente de quase todo mundo: menino negro ou mulato. Como o próprio apelido denunciava, ele era galego e muito “paquerado” pelas meninas. O que tornou o Galeguinho do Coque famoso foram as suas espetaculares fugas. Ele assaltava e fugia para o Coque, ninguém o encontrava. Em 1971, entretanto, ele foi preso e condenado. Na cadeia, converteu-se à religião evangélica e abandonou o crime. Apareceu na tevê várias vezes falando de Deus e maldizendo sua pregressa vida de crimes. Everaldo Belo mudou para o bairro Alto do Jordão, na periferia do Recife, onde abriu um pequeno comércio.
Muitos não acreditavam na regeneração de Galeguinho do Coque. Alegavam que ele usava a religião como disfarce. Alguns anos depois, foi encontrado morto num terreno baldio na cidade de Moreno. Ao lado do corpo, uma bíblia com as páginas centrais cortadas, escondia um revólver calibre 38. Várias versões foram cogitadas na época. Houve quem dissesse que a cena foi armada para justificar a execução dele. O fato é que a saga desse meliante virou lenda e mora no imaginário de muita gente que viveu nessa época”.” (Jornália do Ed).

É preciso caminhar mais atento nessa história, que surpreende a brincadeira, de policia e ladrão, as questões que limitam esses seres socialmente e, principalmente, os motivos, que muitas vezes somos culpados pela conivência cultural que se sustenta nela mesma, que fazem com que esses entes sociais permaneçam de certa forma no imaginário, e de outras formas na realidade.



“... Oi sobe morro, ladeira córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela...” ·.
            Somos expostos a ver, que o ciclo é único e o herói se confunde com o bandido também porque enquanto este persegue aquele, aquele anula o poder deste, pois ambos compactuam e coadunam numa mesma direção. Essa corrida maluca que, a primeira vista, se assemelha a caça do cão ao gato na verdade não expõe a verdade dessa relação, onde a lógica de um sustenta a lógica do outro.



“Acontece hoje e acontecia no sertão
quando um bando de macaco perseguia Lampião

E o que ele falava muitos hoje ainda falam

"Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala!".”
            A relação, quase óbvia, do banditismo nordestino com o cangaço, fato histórico que, de certa forma, influencia a noção de banditismo a nível nacional, posto que principie a série de distorções entre herói e bandido se sustenta “inconscientemente” nos dias de hoje. A cultura pautada numa ficção feita a partir da realidade expõe uma opinião, uma tendência e um lado da figura, deixando de lado sua, sempre presente, outra faceta. Essa foi a primeira tarefa da TV e do rádio jornalístico, nos seus primórdios, criar ícones, ainda que desviados, de rebeldia contra a estrutura punitiva primitiva. Claro que o erro sócio-estrutural não é o banditismo, não seria isso, longe de ser, que eu quero expor, mas, sim, o uso dessa imagem pela TV. É o que me surge ao ler a estrofe que indico. Falar contra esse processo de resposta social às exclusões sem me aprofundar nas questões da exploração seria tolo e breve da minha parte e, assim, não pretendo ser.
Fugindo um pouco da cultura nacional para falar em cultura universal, temos um ícone da ficção, e esse somente um herói ficcional, que responsabilidade nenhuma tem com a verdade dos fatos, que é o Robin Hood: herói que saqueia os ricos para dar aos pobres. Como a ficção e a literatura não são capazes de expressar as contingências do fato, mas somente nos dão a pensar alguns pormenores dos contextos, o que sobre é a abertura de uma brecha de heroísmo social que tem o seu limite no roubo comum, apesar de compreender, sem, contudo, confirmar, a noção de Proudhon que propriedade é um roubo. Ronbin Hood é um herói social, por que os ricos da história são os bandidos sociais. Dessa forma o paralelo com a realidade é verossímil, mas pode, vez por outra, resvalar em injustiças.
Nossa sociedade é capitalista, sistema que presume um ser explorador, um ser explorado, exclusões grosseiras e camadas de miséria sustentando a abonança dos ricos. Será, então que, em se pensando nesse caráter imanente do capitalismo, podemos cogitar seres bons e maus? Ou só podemos cogitar conivências comportamentais e ações? A mudança estrutural do sistema seria muito mais coerente do que nomeações injustas, pois estas não fazem sentido dentro desse sistema quase "contratual" ou consensual. Quem é o herói social? É aquele que abre o caminho para o monstro moral? Quem é o bandido social, aquele que se sustenta na ignorância dos seres explorados? Os limites são complicados e é isso que a música como um todo me faz pensar.



“Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

E quem era inocente hoje já virou bandido

Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido”.
Nessa estrofe eu, o meu olhar, sou exposto ao alicerce capitalista, onde se delimitando o bandido como aquele ser explorado, excluído que pratica a ação de roubar, matar, romper com os códigos de conduta, cria-se a barbárie do miserável. A expectativa quase nula das suas próprias vontades, implica na razão da pequeneza, essa mesma razão, exposta pela mídia, usada pela política e assegurada pelos exploradores. O pobre rompe o código, para matar a fome de maneira pobre, mas não é só um desmerecer do crime miserável, como se o crime do colarinho branco fosse mais digno, mas, sim, mostrar que esse ser, que ora ou outra é usado como ícone midiático, para sustentar o status de poder marginal, interessantes aos ricos, é, naverdade, um núcleo de alienações, que não deixa passar nem mesmo o conhecimento perfeito de suas próprias ações.


 “Banditismo por pura maldade”
“Banditismo por necessidade”
“Banditismo por uma questão de classe.”.

A noção de maldade, de pura maldade, é que complica nesse final de letra, pois há maldade, sim, aqui ali e acolá, de forma que parece que a maldade é sistemática, o sistema capitalista inclui ainda esse dissabor. A existência de castas sociais desprezadas é pura maldade; um ser humano ser levado, quase exclusivamente, ao crime, previsto no código, é pura maldade; o sistema que faz com que nos odiemos constantemente e sejamos preconceituosos é pura maldade; a violência psicológica e física do crime, é pura, também, maldade. Só que podemos tentar separar, devido ao grau de consciência dos atos, inseridos, pelos seus atores, o que tornaria mais significativa a critica de Science, pois a "necessidade", exposta na segunda frase, faz com que os atores ajam de maneira, comumente, mais desesperada e menos pensada, ou mesmo de maneira resignada do tipo: “não tenho nada a perder, minha vida é uma merda e eu não tenho outra escapatória”. Portanto, a pura maldade estaria diretamente atrelada ao esclarecimento, a falta de necessidade, enquanto as outras manifestações violentas teriam mais a ver com um tipo de maldade reflexiva.

Já a questão de classe, no que entendo, é tudo isso, é exatamente o banditismo presumido e inato ao sistema capitalista, que separa em classes (beneficiadas e marginais), o bandido que todos somos em alguma estância, já que o capital nos induz a tais e tais comportamentos e o bandido que somos culpados de existir, já que não exigimos a desconstrução (perceba que eu não disse destruição) do capitalismo como se encontra.

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