Sobre a música "Banditismo
por uma questão de classe"
(Chico Science)
Há algum tempo atrás parei para perceber as letras
de Chico Science. Confesso que, antes disso, eu me deixava levar por um surto dionisíaco
ao ouvir as músicas e, ao ritmo da batucada, eu era completamente conduzido
pelo som.
A mensagem sempre passou por mim, até mesmo quando
eu a cantava, sem que eu a percebesse. Mas, um dia, mais calmo e interessado, pude pensar Chico Science, além de o sentir.
As letras das músicas, assim como o próprio movimento
manguebeat, são perfeitas
insinuações das críticas possíveis sobre o sistema de exclusões, além das
estruturas socioculturais e as estâncias nas quais essas estruturas são
formatadas. Misturando rap com maracatu e outros ritmos brasileiros, o
movimento não procurava somente uma identidade para a cultura dentro do contexto
nacional, mas procurava dar voz à periferia nordestina de maneira mais direta, portanto,
as letras caminham nessa direção, a direção do confronto com os paradigmas e preconceitos
culturais existentes.
Das letras que parei para pereceber “Banditismo por
uma questão de classe” me chama a atenção pela amplitude dos seus conteúdos, que não
ficam, somente, no tabefe da superfície de suas frases jogadas, mas nos faz
pensar no além, nos limites entre herói e bandido, o que faz o bandido ser
bandido e que culpa nós temos nessa história.
Resolvi, então, escrever, para que eu mesmo não me
esqueça das coisas que pensei ao reler e reouvir a musica centenas de vezes
apos ter ouvido a primeira vez. Compartilho, então, as minhas visões sobre esses temas, para, quem
sabe, encontrar algum eco no próprio sistema.
“...
Há um tempo atrás se falava de bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava e progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão...”
O passado reflete o presente de forma concreta
nessa passagem da música de Science. É perceptível que essa estrofe indica que
as noções de solução presenciadas e equalizadas no presente se esgotaram, pois
o princípio (enquanto passado) já estava condenado por si mesmo ao fracasso. Já
que, mesmo que se fale sobre tudo, a atividade dos sujeitos permanece nula e
distraída pela “cultura de massa”. O paralelismo sugerido pela repetição da
frase “Há um tempo atrás” indica que os finais das frases fincam como estacas o
presente contundente e contraditório, e a falha do discurso entre o que se fala
e o que se vê e faz, se sustenta de maneira franca e direta na inércia inocente
do próprio “eu”, posto que na última frase da estrofe a televisão, veículo de
massa tantas vezes abordado e criticado por teóricos como Adorno e Walter
Benjamin, assume o seu papel de gerador de ilusões de conforto e alienações:
enquanto se fala dos “problemas”, das soluções, e do caminho da correção
(progresso), os milhares de “eus” veem televisão e sossegam.
“...
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate...”.
A primeira vista parece que se trata, nesse trecho,
de uma espécie de aleatoriedades insignificantes que indicariam os conteúdos
rasos do veículo televisivo, que, por sua vez, expõe preocupações tolas e
apelos sensíveis e sexuais presas ao medo e ao desejo carnal próprio do humano.
Pesquisando não é exatamente isso, mas continua sendo, sim, uma crítica do
modelo televisivo que cria moldes de bandidos e mocinhos, que muitas vezes se
misturam de maneira quase “osmózica” e por isso são acusados justa e
injustamente – difícil acertar – de propagar algum tipo de lei de status de
poder que torna essa caminho um caminho não só possível como brilhante. Pois Biu
do olho verde e Galeguinho do Coque, eram bandidos famosos no nordeste e que
tinham todo um aparato de construção de imagem midiática e um apelo sensacionalista
em volta de sua aura.
“Biu do Olho Verde,
um jovem de 17 anos, nascido nos Bultrins, periferia de Olinda, além de
assaltante era torturador, gostava de submeter suas vítimas – na grande
maioria, mulheres – a torturas que deixariam os roteiristas de “Jogos Mortais”
no chinelo. Uma das histórias que contam sobre ele diz que, depois de assaltar
uma mulher ele perguntou: “quer
levar um tiro ou um beliscão?”Logicamente, aterrorizada pela
possibilidade de ser baleada, a mulher optou por um beliscão. Ele, então, sacou
de um alicate e arrancou os mamilos dos dois seios da mulher, que ficou
agonizando de dor. O radialista Jota Ferreira, que fazia muito sucesso na época
com um programa no rádio e na tevê chamado “Blitz, Ação Policial”, declarou
ter-se encontrado com Biu do Olho Verde e que o mesmo desmentira todas as
histórias envolvendo torturas com alicate. Em seu blog, Jota publicou uma declaração, atribuída ao bandido, que
teria sido dada num encontro que os dois tiveram na década de 80:
“Jota, eu não sou
'fulêro'. Sou macho e esses cabras da Polícia são tudo maricas, 'tendeu'?...Num
adianta, 'véi', tu ficar me xeretando porque tu não vai 'arrumá' nada, sacou?
Num sei nem que danado é um alicate de unha, porra..! Nunca ameacei ninguém de beliscar
os peitos se não me der dinheiro, 'tendeu'? Agora, já mandei uns cinco pro
inferno, tá ligado?. Eu gosto de dinheiro e 'mulé'... e tem que ser boa, visse?
'Mulé' merda eu nem paro..! Pergunta às 'mulé' se eu maltratei alguma delas..!”.”
(Jornália do Ed).
É inegável que se construiu uma forma-enredo que se
incorporou a histórias de herói, mas que, com artimanha, o herói não precisa
mais ser necessariamente bom, ético e honesto. Os padrões sociais, sendo
rompidos, para uma sociedade autoritária e bruta, já faz com que se reconheça o
valor desse herói “avessado”. Mas não discutiremos a necessidade de se criar
padrões de heróis que rompam com a questão ética, ou que se aproximem de um “humano,
demasiado humano”, portanto falho, portanto comum. A questão da música é que a
forma com que a TV e outros veículos de mídia monta seus “bandidos-heróis” se adéqua
a demanda por ícones que a comunidade já possui, e nisso se valem.
“Galeguinho do
Coque”, que nasceu “Everaldo Belo da Silva”, começou a praticar pequenos furtos
ainda adolescente. Assim como Biu, ele era diferente do esterótipo dos meninos
de rua incutido na mente de quase todo mundo: menino negro ou mulato. Como o
próprio apelido denunciava, ele era galego e muito “paquerado” pelas meninas. O
que tornou o Galeguinho do Coque famoso foram as suas espetaculares fugas. Ele
assaltava e fugia para o Coque, ninguém o encontrava. Em 1971, entretanto, ele
foi preso e condenado. Na cadeia, converteu-se à religião evangélica e
abandonou o crime. Apareceu na tevê várias vezes falando de Deus e maldizendo
sua pregressa vida de crimes. Everaldo Belo mudou para o bairro Alto do Jordão,
na periferia do Recife, onde abriu um pequeno comércio.
Muitos não acreditavam na regeneração de Galeguinho do Coque. Alegavam
que ele usava a religião como disfarce. Alguns anos depois, foi encontrado
morto num terreno baldio na cidade de Moreno. Ao lado do corpo, uma bíblia com
as páginas centrais cortadas, escondia um revólver calibre 38. Várias versões
foram cogitadas na época. Houve quem dissesse que a cena foi armada para
justificar a execução dele. O fato é que a saga desse meliante virou lenda e
mora no imaginário de muita gente que viveu nessa época”.” (Jornália do Ed).
É preciso caminhar mais atento nessa história, que
surpreende a brincadeira, de policia e ladrão, as questões que limitam esses
seres socialmente e, principalmente, os motivos, que muitas vezes somos
culpados pela conivência cultural que se sustenta nela mesma, que fazem com que
esses entes sociais permaneçam de certa forma no imaginário, e de outras formas
na realidade.
“...
Oi sobe morro, ladeira córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela...” ·.
Somos
expostos a ver, que o ciclo é único e o herói se confunde com o bandido também
porque enquanto este persegue aquele, aquele anula o poder deste, pois ambos
compactuam e coadunam numa mesma direção. Essa corrida maluca que, a primeira
vista, se assemelha a caça do cão ao gato na verdade não expõe a verdade dessa
relação, onde a lógica de um sustenta a lógica do outro.
“Acontece
hoje e acontecia no sertão
quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava muitos hoje ainda falam
"Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala!".”
A relação, quase óbvia, do banditismo
nordestino com o cangaço, fato histórico que, de certa forma, influencia a
noção de banditismo a nível nacional, posto que principie a série de distorções
entre herói e bandido se sustenta “inconscientemente” nos dias de hoje. A
cultura pautada numa ficção feita a partir da realidade expõe uma opinião, uma tendência
e um lado da figura, deixando de lado sua, sempre presente, outra faceta. Essa
foi a primeira tarefa da TV e do rádio jornalístico, nos seus primórdios, criar
ícones, ainda que desviados, de rebeldia contra a estrutura punitiva primitiva.
Claro que o erro sócio-estrutural não é o banditismo, não seria isso, longe de
ser, que eu quero expor, mas, sim, o uso dessa imagem pela TV. É o que me surge
ao ler a estrofe que indico. Falar contra esse processo de resposta social às
exclusões sem me aprofundar nas questões da exploração seria tolo e breve da
minha parte e, assim, não pretendo ser.
Fugindo um pouco da cultura nacional para falar em
cultura universal, temos um ícone da ficção, e esse somente um herói ficcional,
que responsabilidade nenhuma tem com a verdade dos fatos, que é o Robin Hood: herói
que saqueia os ricos para dar aos pobres. Como a ficção e a literatura não são capazes
de expressar as contingências do fato, mas somente nos dão a pensar alguns
pormenores dos contextos, o que sobre é a abertura de uma brecha de heroísmo
social que tem o seu limite no roubo comum, apesar de compreender, sem,
contudo, confirmar, a noção de Proudhon que propriedade é um roubo. Ronbin Hood
é um herói social, por que os ricos da história são os bandidos sociais. Dessa
forma o paralelo com a realidade é verossímil, mas pode, vez por outra,
resvalar em injustiças.
Nossa sociedade é capitalista, sistema que presume
um ser explorador, um ser explorado, exclusões grosseiras e camadas de miséria
sustentando a abonança dos ricos. Será, então que, em se pensando nesse caráter imanente do capitalismo, podemos cogitar seres bons e maus? Ou só
podemos cogitar conivências comportamentais e ações? A mudança estrutural do sistema seria
muito mais coerente do que nomeações injustas, pois estas não fazem sentido dentro desse
sistema quase "contratual" ou consensual. Quem é o herói social? É aquele que abre o caminho para o monstro moral? Quem
é o bandido social, aquele que se sustenta na ignorância dos seres explorados?
Os limites são complicados e é isso que a música como um todo me faz pensar.
“Em
cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido”.
Nessa estrofe eu, o meu olhar, sou exposto ao
alicerce capitalista, onde se delimitando o bandido como aquele ser explorado, excluído
que pratica a ação de roubar, matar, romper com os códigos de conduta, cria-se
a barbárie do miserável. A expectativa quase nula das suas próprias vontades,
implica na razão da pequeneza, essa mesma razão, exposta pela mídia, usada pela
política e assegurada pelos exploradores. O pobre rompe o código, para matar a
fome de maneira pobre, mas não é só um desmerecer do crime miserável, como se o
crime do colarinho branco fosse mais digno, mas, sim, mostrar que esse ser, que
ora ou outra é usado como ícone midiático, para sustentar o status de poder
marginal, interessantes aos ricos, é, naverdade, um núcleo de alienações, que
não deixa passar nem mesmo o conhecimento perfeito de suas próprias ações.
“Banditismo por
pura maldade”
“Banditismo por necessidade”
“Banditismo por uma questão de classe.”.
A
noção de maldade, de pura maldade, é que complica nesse final de letra, pois há
maldade, sim, aqui ali e acolá, de forma que parece que a maldade é sistemática,
o sistema capitalista inclui ainda esse dissabor. A existência de castas
sociais desprezadas é pura maldade; um ser humano ser levado, quase exclusivamente,
ao crime, previsto no código, é pura maldade; o sistema que faz com que nos
odiemos constantemente e sejamos preconceituosos é pura maldade; a violência psicológica e física do crime, é pura, também, maldade. Só
que podemos tentar separar, devido ao grau de consciência dos atos, inseridos, pelos seus atores, o que tornaria mais significativa a critica de Science, pois a "necessidade", exposta na segunda frase, faz com que os atores ajam de maneira,
comumente, mais desesperada e menos pensada, ou mesmo de maneira resignada do
tipo: “não tenho nada a perder, minha vida é uma merda e eu não tenho outra
escapatória”. Portanto, a pura maldade estaria diretamente atrelada ao esclarecimento, a falta de necessidade, enquanto as outras manifestações violentas teriam mais a ver com um tipo de maldade reflexiva.
Já
a questão de classe, no que entendo, é tudo isso, é exatamente o banditismo
presumido e inato ao sistema capitalista, que separa em classes (beneficiadas e
marginais), o bandido que todos somos em alguma estância, já que o capital nos
induz a tais e tais comportamentos e o bandido que somos culpados de existir,
já que não exigimos a desconstrução (perceba que eu não disse destruição) do
capitalismo como se encontra.