segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Laranja Mecânica : fluência em cambalhotas


Um filme que virou um símbolo. Ao menos no meu ciclo de amizades (compreendam com isso certo gral de "alternatividade" cultural previsível) não há quem não conheça a história de Alex, talvez o filme mais reconhecível da vasta lista de produções assinadas por Stanley Kubrick. Um símbolo, sim, de fetiches, moda e etcetera e tal. Eu mesmo tenho uma camisa e uma caneca do filme e consigo perceber que, assim como outros símbolos da moda, há quem só conheça a imagem e não a obra. Há quem tenha a camisa e a caneca e não saiba exatamente do que se trata. O mundo anda cada vez mais mergulhado na alienação, e as camisetas do "Che", talvez a maior vítima dessa reprodução imagético-comercial desenfreada, é ostentada como bandeira por muitos que nem sequer conhecem sua trajetória e, por mais incrível que possa parecer, nem de longe compactuam com suas ideias. Mas isso é outra história.
O fato é que a adaptação de um livro em filme e a natural transformação de um produto artístico em símbolo esvaziado, em pura imagem que remete á qualquer coisa, acaba por condicionar o contexto intrínseco da obra em seus primórdios à um grupo seleto de admiradores e inquietos, e assim foi com Laranja Mecânica: livro de Anthony Burgess, autor que foi posto de certa maneira no ostracismo, ao menos em se tratando de Brasil, onde se colocou o seu livro em uma estante distante feita somente para fãs mais dedicados. 
Tudo permaneceria dentro dessa lógica se, em 2012, o mercado dedicado ao publico consumidor “alternativo” não tivesse reeditado o livro (o que, aliás, muito agradeço!) no ano em que a história faria cinquenta anos, com toda a pompa que um trabalho comemorativo necessita: prólogos, glossários, prefácios e afins, mas, por mais tentador que vasculhar a história que deu origem a um dos filmes de Kubrick de que mais gosto possa ser, a vontade de revisitar essa história só me veio, de maneira avessada, depois de estudar e pesquisar a vida e a obra de James Joyce. Fiquei durante um bom tempo somente com o estranhamento absurdo que o filme me tinha dado e a vida foi correndo seus próprios rumos, rumos que se deram em Joyce como divisor.
Nessa minha pesquisa sobre Joyce encontrei uma biografia escrita de maneira cativante por um escritor, compositor, teórico da literatura inglesa e grande amante da literatura Joyceana, e as posições contidas, e colhidas por mim, em Homem comum enfim - Uma introdução a James Joyce para o leitor comum (livro da Companhia das Letras que precisa urgente de uma nova edição, pois a edição de 1994 se encontra esgotada), corroboraram para a minha inclusão no grupo dos Joyceanos convictos e irreparáveis. Era a “biografia”, se é que podemos chamar assim, escrita por Anthony Burgess, nome que não me parecia estranho, “desestranhesa” esta que logo foi desvelada pela distinção de seu autor, pela obra que conheci na rebarba de Kubrick e pelas relações que pude criar entre o livro mais estranho que já li (Ulysses, de Joyce) e o filme que havia me causado maior estranhamento (Laranja Mecânica, de Kubrick). O trabalho sobre a linguagem a dar cambalhotas, em ambos com equivalente destreza, saltaram para mim como verdadeira paridade entre os autores, como laços de uma infalível hereditariedade.
Mergulhando ainda mais em Burgess, descobri outras referências feitas à Joyce, tais como as composições musicais sobre alguns temas de Finnegans WakeUlysses, traço da prática artística que, inclusive, aproxima ainda mais os dois autores, já que James Joyce também era um apaixonado pela música e um tenor de certa desenvoltura. Burgess era um profundo estudioso das literaturas, principalmente das obras de Joyce.

Só é uma pena que a obra de Burgess não tenha, ao menos em terras tupiniquins, a relevância que lhe é cabida e que não haja o resguardo devido da vida de seus textos com a constância de suas traduções e republicações, sendo que se trate de um importante nome da literatura de língua inglesa do século XX, constantemente colocado  ao lago de George Orwell (de A revolução dos bichos e 1984) e Aldous Hurxley (de Admirável mundo novo), autores com maior reconhecimento dentro dos motes da literatura de ficção cientifica. Talvez, como já dito, todo o processo de que foi participado tenha deletado um bocado da história de sua obra, mas é ressaltar o quanto me valeu ler seu livro, para que outros interessados embarquem nessa jornada. 
Basicamente, fora todas as relações não óbvias e constantemente abertas da história, o estranhamento que me causou o filme foi transformado em familiaridade com o livro. Não é que os problemas tenham se dissolvido em fofura ou conformismos pacíficos do tipo, mas, sobretudo, pelo grandioso trabalho de linguagem, pela noção de passagem de tempo através do personagem e por outros detalhes cerceados por certa censura moral que, para mim hoje, perante o livro, apequenam o filme de Kubrick. O livro tornou a história íntima ao apresentar a, ainda estranha, linguagem “Nadsat” (também utilizada no filme)de uma maneira perene e mais sedutora do que no filme, as gírias do grupo de Alex penetram nosso pensar até que se tornam claras como a água, nos colocando, então, dentro do grupo como partícipes, cúmplices, o leitor é mais um “drugui” e o código é compartilhado, mais ou menos como acontecem às pessoas que vão morar em outro país sem ter noção alguma da língua deste e aos poucos começam a ganhar fluência..., ganha-se fluência no livro de Burgess, mesmo sem olhar o glossário (o que, inclusive,  recomendo), fluência que é impossível no filme se não for devorado e ruminado com frequência. Essa relação com a linguagem criada por Burgess foi o fator de maior arrebatamento para mim, uma vez que era o contato mais potente com aquilo que mais une Burgess a Joyce: as cambalhotas da língua, que passam a ser de todos.  

       O filme continua tendo o charme da astucia sutil de Kubrick e a minucia dos detalhes que identificávamos antes de ler o livro (vale muito a pena ver e rever e rever e rever... o filme) e tenho que dar o braço a torcer, pois apesar das grandes diferenças entre filme e livro, e mesmo esse sendo um texto para apontá-las e reforçá-las afim de reconhecer os feitos de Burgess, Kubrick foi o diretor mais fiel ao ambiente e ao psiquismo dos personagens que eu já vi em adaptações ao cinema. Ainda assim, retornando ao livro, pareceu-me que, depois de ler o livro, para um bom mergulho nessa história, Burgess ainda é indispensável!