O fato é que a
adaptação de um livro em filme e a natural transformação de um produto artístico em símbolo esvaziado, em pura imagem que remete á qualquer coisa, acaba por
condicionar o contexto intrínseco da obra em seus primórdios à um grupo seleto de
admiradores e inquietos, e assim foi com Laranja
Mecânica: livro de Anthony Burgess, autor que foi posto de certa maneira no ostracismo, ao menos
em se tratando de Brasil, onde se colocou o seu livro em uma estante distante
feita somente para fãs mais dedicados.
Tudo permaneceria dentro dessa lógica se, em 2012, o mercado dedicado ao publico consumidor “alternativo” não tivesse reeditado o livro (o que, aliás, muito agradeço!) no ano em que a história faria cinquenta anos, com toda a pompa que um trabalho comemorativo necessita: prólogos, glossários, prefácios e afins, mas, por mais tentador que vasculhar a história que deu origem a um dos filmes de Kubrick de que mais gosto possa ser, a vontade de revisitar essa história só me veio, de maneira avessada, depois de estudar e pesquisar a vida e a obra de James Joyce. Fiquei durante um bom tempo somente com o estranhamento absurdo que o filme me tinha dado e a vida foi correndo seus próprios rumos, rumos que se deram em Joyce como divisor.
Tudo permaneceria dentro dessa lógica se, em 2012, o mercado dedicado ao publico consumidor “alternativo” não tivesse reeditado o livro (o que, aliás, muito agradeço!) no ano em que a história faria cinquenta anos, com toda a pompa que um trabalho comemorativo necessita: prólogos, glossários, prefácios e afins, mas, por mais tentador que vasculhar a história que deu origem a um dos filmes de Kubrick de que mais gosto possa ser, a vontade de revisitar essa história só me veio, de maneira avessada, depois de estudar e pesquisar a vida e a obra de James Joyce. Fiquei durante um bom tempo somente com o estranhamento absurdo que o filme me tinha dado e a vida foi correndo seus próprios rumos, rumos que se deram em Joyce como divisor.
Nessa minha
pesquisa sobre Joyce encontrei uma biografia escrita de maneira cativante por
um escritor, compositor, teórico da literatura inglesa e grande amante da
literatura Joyceana, e as posições contidas, e colhidas por mim, em Homem comum enfim - Uma introdução a James
Joyce para o leitor comum (livro da Companhia das Letras que precisa
urgente de uma nova edição, pois a edição de 1994 se encontra esgotada),
corroboraram para a minha inclusão no grupo dos Joyceanos convictos e
irreparáveis. Era a “biografia”, se é que podemos chamar assim, escrita por Anthony
Burgess, nome que não me parecia estranho, “desestranhesa” esta que logo
foi desvelada pela distinção de seu autor, pela obra que conheci na rebarba de
Kubrick e pelas relações que pude criar entre o livro mais estranho que já li (Ulysses, de Joyce) e o filme que havia
me causado maior estranhamento (Laranja Mecânica,
de Kubrick). O trabalho sobre a linguagem a dar cambalhotas, em ambos com
equivalente destreza, saltaram para mim como verdadeira paridade entre os autores, como laços de uma infalível hereditariedade.
Mergulhando
ainda mais em Burgess, descobri outras referências feitas à Joyce, tais como as composições
musicais sobre alguns temas de Finnegans Wake
e Ulysses, traço da prática artística que, inclusive, aproxima ainda mais os dois autores, já que James Joyce também era um apaixonado pela
música e um tenor de certa desenvoltura. Burgess era um profundo estudioso das literaturas, principalmente das obras de Joyce.
Só é uma pena que a obra de Burgess não tenha, ao menos em terras tupiniquins, a relevância que lhe é cabida e que não haja o resguardo devido da vida de seus textos com a constância de suas traduções e republicações, sendo que se trate de um importante nome da literatura de língua inglesa do século XX, constantemente colocado ao lago de George Orwell (de A revolução dos bichos e 1984) e Aldous Hurxley (de Admirável mundo novo), autores com maior reconhecimento dentro dos motes da literatura de ficção cientifica. Talvez, como já dito, todo o processo de que foi participado tenha deletado um bocado da história de sua obra, mas é ressaltar o quanto me valeu ler seu livro, para que outros interessados embarquem nessa jornada.
Basicamente, fora todas as relações não óbvias e constantemente abertas da história, o estranhamento que me causou o filme foi transformado em familiaridade com o livro. Não é que os problemas tenham se dissolvido em fofura ou conformismos pacíficos do tipo, mas, sobretudo, pelo grandioso trabalho de linguagem, pela noção de passagem de tempo através do personagem e por outros detalhes cerceados por certa censura moral que, para mim hoje, perante o livro, apequenam o filme de Kubrick. O livro tornou a história íntima ao apresentar a, ainda estranha, linguagem “Nadsat” (também utilizada no filme)de uma maneira perene e mais sedutora do que no filme, as gírias do grupo de Alex penetram nosso pensar até que se tornam claras como a água, nos colocando, então, dentro do grupo como partícipes, cúmplices, o leitor é mais um “drugui” e o código é compartilhado, mais ou menos como acontecem às pessoas que vão morar em outro país sem ter noção alguma da língua deste e aos poucos começam a ganhar fluência..., ganha-se fluência no livro de Burgess, mesmo sem olhar o glossário (o que, inclusive, recomendo), fluência que é impossível no filme se não for devorado e ruminado com frequência. Essa relação com a linguagem criada por Burgess foi o fator de maior arrebatamento para mim, uma vez que era o contato mais potente com aquilo que mais une Burgess a Joyce: as cambalhotas da língua, que passam a ser de todos.
O
filme continua tendo o charme da astucia sutil de Kubrick e a minucia dos detalhes que identificávamos antes de ler o
livro (vale muito a pena ver e rever e rever e rever... o filme) e tenho que dar o braço a torcer, pois apesar das grandes diferenças entre filme e livro, e mesmo esse sendo um texto para apontá-las e reforçá-las afim de reconhecer os feitos de Burgess, Kubrick foi o diretor mais fiel ao
ambiente e ao psiquismo dos personagens que eu já vi em adaptações ao cinema. Ainda
assim, retornando ao livro, pareceu-me que, depois de ler o livro, para um bom mergulho nessa história, Burgess ainda é indispensável!