A música, eu indicaria primeiramente a música como aquilo que une esse grupo de pessoas numa cultura particular. Claro que se poderia pensar primeiro na questão social, na camada a qual pertencem essas pessoas e assim caminhar para um ponto sociológico cabal, uma visão talvez marxista dessa cultura que estruturaria toda uma crítica social embasada na dialética e na lógica materialista, ou até uma outra visão social, esta, porém, leviana – por não conseguir alcançar o “verdadeiro” sentido dos sistemas de exploração e ficar no meio do caminho do exame social e do exame, por assim dizer, antropológico –, mas acho que eu erraria ainda mais, porque seguindo adiante nessa visão sociológica, deixaria de me aproximar, diretivo ou levianamente, dessa cultura enquanto manifestação identitária e incontrolável que é, e, ainda, estaria caminhando para um lado que parte de, e institui, um julgamento de valor e uma distinção entre erudito e popular que em nada nos auxilia a compreender essa cultura que reflete e se deixa refletir não só o morro, a favela, o subúrbio, mas toda a relação dos meios, das classes e das culturas que se configuram na nossa sociedade. Então, indico a música como fator determinante, inclusive porque senão não trataríamos de nomes como “funkeiros” e, assim, cunhando com um radical “funk” que indique a música como elemento preponderante.
Eu poderia ir além e dizer, o que
seria um deslize clichê, que o funk hoje não é mais “Som de preto, de favelado...”.
Que o funk é, em boa parte, assumido e consumido pela classe média e alta e,
com isso, assume contornos distintos do que era quando marginalizado, para
poder pautar a minha escolha pela música, e não da estrutura social, como
determinante de um olhar diferente sobre o mundo, mas acho essa ideia de
cultura que se espalha muito concernente e cômoda somente à indústria cultural,
pois há ainda muito de particular no funk dentro das comunidade. E é desse
funk, ainda não coletado, cooptado e pasteurizado pela indústria cultural e
pela moda que vamos falar; esse funk que ainda, e talvez para sempre, revelará
um olhar, que, aí sim, podemos dizer conscientemente dos massacrados; dos
marginalizados; dos explorados; dos ilhados pela sociedade.
Sim, o funk carioca é uma cultura
determinante e completa, como imaginamos ser qualquer outra cultura: com
estética, postura, padrões de beleza, moral e ética, ideologias e etc., Tudo
aquilo que se pode resumir numa palavra muito utilizada no mundo funk que é o
“proceder”. Existe um “proceder funkeiro” e essa palavra – “proceder” – resumiria
bem a noção de qualquer cultura, ativa e viva nos homens como elas são, e não
estáticas e mórbidas como lemos, estudamos e geralmente identificamos. A
cultura nesse “proceder” está como que atrelada ao caminhar, ao se posicionar e
ao olhar que cada grupo possui de si mesmo e do mundo.
“E Aê irmão
Humildade
e disciplina
Vida
loka
Diretamente
do chapa só proceder
Turano
se liga vou dizer
É
paz, justiça e lazer...”.
(Aê
irmão - Menor do Chapa)
O
proceder é essa ética própria, essa estética singular, esse portar-se e
responder ao mundo que confere ao funkeiro o status de identidade cultural distinta.
O proceder é o que diferencia o funkeiro do pagodeiro, grupos que muitas vezes
coexistem num mesmo meio. Apesar de, também muitas vezes, ser muito provável que
encontremos entre os fruidores dessas manifestações artísticas, pessoas que se
somam ao mesmo tempo a funkeiros e pagodeiros, nesse caso, em particular, estou
tratando do funkeiro enquanto prática desse olhar, do funkeiro que não é um
simples usufruidor da manifestação funk, mas quase que um ativista – enquanto
artista – do funk.
É
inegável, assim como assinalou Francisco Bosco em sua coluna no Jornal O Globo[1],
que existe algo de dionisíaco no ritual que se pratica nos bailes. Uma mistura
quase transcendental de corpos em danças frenéticas e eróticas; corpos
embriagados de desejo, prazer, suor e álcool. E inegável também que é ali, nos
bailes, que o jogo de forças, ou melhor, da lei dos mais fortes se posta
explicita, onde homens e mulheres exibem seus atributos corporais, sexuais e
materiais em um ritmo quase tântrico, como que se pavoneando uns aos outros. O
som do “batidão” ou “tamborzão” (reproduções de batidas de jongo e de pontos do
candomblé que assumiram a condução do ritmo, depois das batidas eletrônicas do Miami bass da década de 90) é mais uma
marca da herança negra, marca que se encontra também nas roupas, nos cabelos,
nas formas, nos corpos e por toda a parte. Alguma nudez talvez venha dessa
genealogia tribal e não conferem diretamente, no entanto, o mesmo juízo moral
que se encontra na sociedade mediana, ou na burguesia, por assim dizer. Os
corpos estão expostos e não faz nenhum sentido a crítica do estilo das
vestimentas da exposição da carne, inclusive porque está sendo travada exatamente
uma batalha sexual, mas também por causa de uma moral própria que se assiste e
que compreende esse grupo, onde gêneros e posturas se misturam e se permitem
transladar com alguma liberdade em torno dos sexos sem que isso se torne
símbolo de devassidão ou qualquer coisa do tipo.
A
diversão e a graça são outras potencias dessa manifestação e a dança tem um
papel importante para essa configuração. A gozação e a risada, para além dos
passos ritmados, detonam uma abertura para a possibilidade de se reestruturar a
dinâmica dos movimentos corporais e assumir, a qualquer custo, a sua forma de
conduzir a si mesmo. Se ri do outro, se ri de si, dança-se sem medo de errar,
até, em alguns momentos, objetivando a graça e o erro. Cada corpo e cada
intenção chama atenção para si com as armas que tem: uns com o sexo e com a
destreza da dança e outros com a graça e a paródia. E o “Passinho”, dança do
funk que mistura elementos do kuduro africano, do frevo, do break e de outras
danças, é o representante mais potente dessa mistura entre o bobo e o sensual,
entre a graça e a destreza, e, além disso, é o representante da força pulsante,
vital e criativa que possui, e é possuída pela, a cultura funk.
Nasce, então, talvez da forma com que se configuram os corpos nos bailes, misturada
com a forma de manifestação dos poderes (machistas ou não) na estrutura social,
com uma pitada forte de reformulação moral da noção de corpo, além da carência
de estima de um povo que sofre as dores de uma sociedade fragmentada e cruel
nas suas desigualdades, o apego material que ficou bastante visível no funk
nessa última década. Fora do baile as letras começaram a refletir o jogo do
status e do sexo dentro dele e, com isso, expandiu-se a lógica interna desse
gueto para as outras culturas da cidade, criando embates conceituais sobre as
posições, os valores e as ilusões existentes.
O
funk ostentação, o funk “putaria”, a mulher no funk e certas lógicas machistas para quem observa de fora começaram a eternizar no funk, e no funkeiro, em relação às culturas que se sobrepõem à cultura da periferia, uma carência por igualização entre essas culturas, não uma equalização das mesmas, mas uma simples troca do que é sempre visto como o "bom", o "sucesso". O funkeiro agora quer
ter e ser, ou mesmo parecer com um mafioso, um burguês, ou até mesmo um rapper americano (crias da periferia de uma outra realidade), um
milionário, um super-homem de autoestima inabalável e cercado por mulheres que
o desejam e as funkeiras objetivam em suas letras o jogo da sedução, onde elas
são “gostosas”, “cachorras”, "poderosas" e escolhem os seus homens, roubam os homens das
outras, mas, com isso, se veem sempre sobre a perspectiva do desejo do homem e
não percebem a força de seu próprio desejo. Sem, desde já, traçar nenhum juízo de valor, o
funk, a partir da demanda da carência de homens e mulheres, se aproxima do
universo particular da cultura “Hip pop” americana, inclusive nos seus ícones
que se distanciaram da origem de contestação social do Hip hop para a questão
do status social, das posses e dos prazeres imediatos. O que, mesmo sem discutir e
explicitar o mundo de explorações onde vivem os funkeiros, não deixa de
refletir as particularidades dessa identidade cultural e as carências incutidas pelo mercado de consumo.
Destinos,
trajetos e objetivos a parte, um grupo de MC’s permanece arraigado a um tipo de
funk que para a mídia ficou no passado; para alguns funkeiros ficou na memória
e para outros só fazem parte da história; um tipo de funk que pode ser que não
seja interessante hoje em dia para a indústria cultural; pode ser que não se
adequem a massificação, ou às demandas insurgentes da nova classe media
brasileira e pode até ser que sejam os mais combatidos, convenientemente, pela
força do poder do Estado: o funk de protesto. Nomes como MC Leonardo, MC
Júnior, MC Cidinho, MC Doca entre outros, que frequentavam as rádios e televisões
na década de 90, hoje formam uma espécie de resistência. Não uma resistência de
força já que não há um combate direto ao funk de protesto, mas uma resistência
justamente ao poder da mídia que os suprime e os tenta calar e apagar, que
tenta fazer do funk uma manifestação com uma só via, a via contemporânea da
“sexualização” e da ostentação, excetuando-se, é claro, o funk melódico onde a
temática do amor permanece intacta e o funk galhofa onde o humor é a principal
intenção.
Então
seriam esses funkeiros ligados culturalmente pela resistência que representam?
Pela simples contestação social de suas letras? Pela sua alternatividade
perante o mundo mercantilizado e pela sua independência da mídia? Esses são
fatores de grande importância nessa delimitação da cultura do funk de protesto,
mas, mais do que isso, o que liga cada um desses MC’s é a posição e a consciência
social e política dentro e fora das suas comunidades. É muito fácil dizer “Tá
tudo errado”, como o MC Leonardo e o MC Junior indicam na letra de sua música
homônima, porém o MC Leonardo, por exemplo, representa um ícone político, não
só por sua história político-partidária no Psol, mas por sua história de luta
pelo funk, pela sua comunidade e pela igualdade de condições. A cultura do funk
de contestação se liga, então, pela prática e pela luta na construção, ou
melhor, para usar um conceito derridiano, na “descontrução” da sociedade com a
formulação, por exemplo, de movimentos como a APAFunk[2] ,
na elaboração de leis como a “Lei Funk é Cultura (Lei 5543/2009)” e em tantas
outras bandeiras que levantam esses funkeiros.
Muitos
desses funkeiros sofrem e sofreram perseguições dos aparatos de controle do
estado; autuados, presos e fichados pelo crime de apologia ao narcotráfico.
Onde as suas músicas, que refletiam a vida do jovem marginalizado, acabaram por
sentencia-los culpados de toda a exploração que se sofre nas favelas. As suas
roupas, perto dos funkeiros da mídia, são bem mais simples, traço que indica
que a consciência de suas posições sociais avança para a vestimenta. Claro que
a roupa não foge completamente do padrão funkeiro, sobretudo daquele funkeiro
da década de 90. O boné, o bermudão e a camisa larga ainda regem o estilo. Mas
se engana quem pensa que esse grupo de funkeiros compreende uma faixa etária
só, que só mesmo os velhos Cidinho, Doca, Junior, Leonardo..., levam essas
letras de protestos. O funk de protesto se renova a cada ano - como na voz do jovem MC de São Gonçalo, PH Lima do funk (Bandido do Rio) -, ainda que perseguido e marginalizado pelos governantes, renegado pela mídia, se renova forte no peito do jovem que busca uma identificação conjunta a partir de sua própria e difícil realidade.
O
funk, sendo de protesto ou não, é já uma crítica social, pois expõe uma cultura
que cotidianamente é assolapada pelas questões prévias da elite social, mas o
funk, para além das estruturas sociais demonstra que a cultura se impõe e se
expande para o outro, tanto como moda, como dança, como forma de corpo, como
ritmo, como olhar, como som..., e ao funk de protesto cabe ser a voz que diz “a
real” e chega aos ouvidos atentos.
Mas
não me bate doutor
Pois
eu sou de batalha
E
acho que o senhor
Está
cometendo falha
Se
dançamos funk
É
por que somos funkeiros
Da
favela carioca
Flamenguistas,
brasileiros
Apanhei
do meu pai
Apanhei
da vida
Apanhei
da policia
Apanhei
da mídia
Quem
bate se acha certo
Quem
apanha está errado
Mas
nem sempre meu
Senhor
as coisas vão por
Este
lado, violência só
Gera
violência irmão
Quero
paz, quero festa
O
funk é do povão
Já
cansei de ser visto com
Discriminação
Lá
na comunidade funk
É
diversão, hoje tô na parede
Ganhando
uma geral
Se
eu cantasse outro estilo isto
Não
seria igual.
(Não
me bate doutor - Cidinho e Doca).
André Vargas
[1] Arte e “Povo”. Texto de Francisco Bosco para a sua coluna do jornal
O Globo em maio de 2013, onde o escrutor fala da relação do funk e da dança
“passinho” como questões dionisíacas, transcendentais e não contemplativas e
“conteudísticas”.
[2] A APAFunk foi fundada em 10 de
dezembro de 2008, por profissionais e amigos do funk cansados de assistir à
discriminação sem fazer nada. O intuito é defender os direitos dos funkeiros e
lutar pela Cultura Funk, contra o preconceito e a criminalização. Para isso, a
Associação promove debates na sociedade sobre a situação dos artistas do funk, bem
como atividades de conscientização dos funkeiros sobre seus direitos. Rodas de
funk, palestras e videos são alguns instrumentos utilizados pela associação
para levar a mensagem da Associação para universidades, escolas, cadeias,
favelas, praças, ruas e todas as instituições da sociedade que abram espaço
para debater a nossa cultura.