Eu nunca fui um sujeito engajado, na prática, em causas políticas.
Tenho, inclusive, muitas ressalvas aos partidos, às legendas e a cegueira das
doutrinas partidárias que não sustêm uma autocrítica construtiva ou uma
possibilidade dialética de renovação, ou melhor, de desconstrução de seus
saberes. Mas, sempre nutri meus pensamentos sociais críticos com leituras e tessitura
de textos que acabam por refletir, além da minha aporia prática (minha ausência
em passeatas, manifestos e protestos) a minha hiperatividade e o meu incomodo
criativo político-social (meu olhar sobre as questões comunitárias ao redor).
Porém, sinto uma sede imensa de me manifestar, quando uma
causa me toca por sua inequívoca pluralidade: abarcando todas as classes e
posicionamentos políticos; causas que tratam do bem comum mais perceptível;
causas que deveriam nos unir, pois refletem no que todos nós sofremos; causas
como a do manifesto que participei hoje, contra o aumento abusivo das passagens
no transporte público.
Na semana passada, ao ver as manifestações de São Paulo pela
mesma causa, comecei a me questionar sobre a postura do carioca diante dos
abusos nas tarifas, e seus aumentos, cobradas sobre qualquer produto, tornando
o Rio de Janeiro uma das cidades mais caras do mundo, e pensei em todos os
clichês de estigma carioca para poder responder à uma possível inércia do povo.
Mas comecei a ver pelo facebook uma movimentação de agrupamento e manifestação
contra o aumento das passagens que prometia juntar muitas pessoas que, como eu,
não aguentam mais os descasos sofridos e conseguem sair do trauma da violência
da exploração de seus trabalhos e estudos para poder criticar os rumos da nossa
sociedade.
De pronto aceitei me juntar a esse “ato unificado”, já
sabendo que lá estariam os partidos de sempre, os gritos de ordem de sempre e a
cara de sempre, não a cara do povo - pois esse ainda não consegue escapar do
trauma da violência da exploração de suas vidas, já que havemos de ter, para isso, uma força extra,
a força da consciência social-, mas a cara do jovem de classe-média engajado e
politizado, que fazem parte de uma microelite ideológica (eu era, lá, mais um
com essa cara).
Não gosto de muvucas, aglomerações ou qualquer dez pessoas,
sinto que grupos tendem a criar descontroladamente um pensamento devastador de uma hora para
outra, pautados na coragem que passam a possuir os indivíduos coletivizados e
massificados. Um grupo passa a pensar por si e o pensamento individual acaba
por escapar. Gosto de manter minhas escolhas intactas. Mas lá estava eu com
vergonha de gritar, de pular, de bater palmas, mas indubitavelmente presente e
ciente da força do ato de protesto.
Tremulavam bandeiras
de partidos e retumbavam vozes juvenis nos megafones e microfones, algumas
caras percorri em busca de uma companhia conhecida, alguns conhecidos, mas
ainda não me deixo chamar de “companheiro” qualquer que seja a criatura.
O ódio, e o desejo de combate masoquista já estavam
estampados no rosto dos policiais que cercavam a movimentação, falavam e
pensavam entre eles as atrocidades que fariam com aquele bando. Deglutidos e digeridos,
como estão, pela doutrina lógica do estado forte de repressão, preparavam suas
armas para combater a baderna.
Partimos da Cinelândia, onde nos reunimos em frente à
Câmara municipal dos vereadores, para a Rua Araujo Porto Alegre rumando para a
Rua Primeiro de Março. Parando, vez por outra, em frente aos prédios
emblemáticos do paradoxo da justiça na cidade e no estado de onde pude ver tudo com
clareza, apesar de estarmos em, mais ou menos, trezentos manifestantes para a mídia e seiscentos para os manifestantes. Eu
estava andando pela calçada cômoda e investigativamente. Não havia imprensa ao lado, noticiando a manifestação,
muitos fleches salpicavam de fagulhas os olhos, mas eles eram nossos, éramos nós a
registrar os nossos momentos. A ausência da imprensa e a predisposição da PM me fizeram
calcular a obviedade: qualquer pequeno estranhamento transbordaria o caldo da
pacificidade. Uma agonia me tomou quando um punk anarquizou a bandeira nacional
e a pôs em fogo, percebi ali que uma parcela bem pequena estava disposta ao conflito
tanto quanto os policiais.
E eis que, chegando à Primeiro de Março, os PMs prendem um
daqueles punks que atearam fogo à bandeira. As pessoas recuaram do caminho do
protesto e clamaram por justiça quando viram o rapaz sendo detido. Era a deixa
que a policia precisava para começar o que previra desde que ouviu o brado “Acabou
o amor, isso aqui vai virar Turquia!”. Aproximadamente cinquenta homens do
batalhão do choque e uns tantos PMs com suas bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo,
cassetetes e spray de pimenta..., açoitavam a todos que lá estavam. Junto com a
truculência se seguiam injúrias “Vagabundo!”, “Sai daqui, cachorra” numa obra de horror vivo e vertiginoso... Os gases
eram espirrados a uma distância ínfima dos olhos das pessoas que estavam nas
calçadas e que, às vezes, nem parte da manifestação eles faziam.
Os manifestantes não conseguiram se reunir novamente. A polícia
dispersava, ainda com truculência temperada com pimenta, qualquer reunião,
inclusive para pegar (e pagar a R$ 2,95) o ônibus.
Eu nunca tinha sentido antes o efeito do spray de pimenta,
mas posso dizer agora, de onde eu estava a ver, que a minha vontade de chorar se deu mais pela
forma como tentam nos calar do que pela irritação nos olhos. O mais gozado é
perceber que o policial também paga a passagem e, talvez, também a acha injusta,
mas ele não consegue perceber a comunidade desse grito, desse gesto e nem tão perto do nosso tempo fará o
que bem devia: juntar-se e lutar do lado certo.
Ficou claro para mim que muitas coisas, infelizmente, não
mudaram nos movimentos estudantis, partidários, esquerdistas..., inclusive, o
que já falei, e que talvez seja o pior dos indícios, a nossa cara de elite. Mas
também ficou claro para mim o quanto os nossos brados são inconsequentes e infantis; o quanto nossas ideias de manifestações são fórmulas copiadas de outros lugares.
Ficou claro que um ato unificado, que seja, tem que ser organizado para que
pequenos grupos não fujam do tema e se inflem sobremaneira e, mais do que isso, ficou insuportavelmente claro, para mim, que não temos a noção de povo que devíamos, a noção de que somos um só e único povo, mas, sim, destacamos o carioca ordinário que quer voltar para casa, ver novela e
descansar - que quer esquecer o trabalho do dia-à-dia, e para quem qualquer
pensamento crítico é coisa de vagabundo, desses mesmos “vagabundos” (que logo somos), que deviam
agir numa mudança de consciência desse ser-senso-comum massificado e explorado, mas, pelo contrário, se fecham na crueza de uma ideologia do bem comum presa a elite esclarecida e burguesa para
poder criticar a ignorância do restante.
Sobre a polícia, só posso concordar com o nosso filósofo Vladimir
Safatle que escreveu o artigo na Folha de São Paulo “Pela extinção da PM” e
rezar para que um dia isso ocorra. Sobre a imprensa, só posso dizer que a ausência
da imprensa foi cômoda, pois ela pôde depois dizer o que, alias, já disse: “Ninguém
sabe quem começou o confronto” - eu sei. Sobre o prefeito Eduardo Paes, eu só espero que ele cumpra o
combinado se o Brasil perder a copa para a Argentina e sobre o transporte, eu
vou continuar criticando, suas tarifas e serviços, mesmo que eu seja obrigado a
usar, e me calar por instantes coléricos, do mesmo.
André Vargas