terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

“O som ao redor” e as expectativas


Nada pode exprimir melhor a sensação que se tem ao se assistir este filme do que a quebra de expectativas. O espectador, ou seja, aquele que assiste ao correr das cenas ao mesmo tempo em que espera pelos desfechos, é jogado em armadilhas estrategicamente dispostas no decorrer do enredo pelo diretor.   Claro que poderíamos falar da imagem poética, da imagem cinematográfica, que obviamente marcam como fotografias exemplares em nossa memória nesse filme, mas não adentrarei a estética das imagens nesse texto. Partido-se desta perspectiva mais esteta, colocaríamos a sequencia da cachoeira de sangue em destaque, como se fosse um ponto vermelho, um ponto sanguinário, na história relatada no filme. Mas nem essa cena, por si só, faria sentido, para mim, apesar de profunda e autonomamente bela e poética, se ela mesma não assegurasse o mistério de esperar por um mistério, o mistério do por vir, ou seja, se ela mesma não fizesse parte de um jogo de montagem.

Todo esse filme é construído para que o espectador espere ansiosamente por um drama, uma tragédia, um desvelamento, algo que nos aguarde atrás da porta e nos dê um susto eterno, verdadeiro e infalível, porém, à medida que o tempo passa e nossas expectativas são, uma por uma, frustradas, com  genialidade, pela montagem, a expectativa fica de certa maneira “avessada”, como se pensássemos assim “É tudo normal e corriqueiro, não vai acontecer nada de diferente aí”. E é nesse exato momento de “desespectativa” que um ingrediente novo de mistério se configura aos nossos olhos e nos projeta novamente para a espera de uma novidade.
Botando em cenas, podemos sequenciar as tais expectativas sobre as quais falo e deixar mais claro o que quero dizer. Por exemplo, na cena em que o personagem "João", interpretado pelo ator Gustavo Jahn, descobre que o carro de uma amiga tem o aparelho de som roubado em sua rua. E, perguntando aos trabalhadores dos prédios, desconfia de um sujeito chamado "Dinho", que até então não fora apresentado.  Algo no diálogo e na mistura dos sons que se seguem delicadamente semeados, a suspeita de João sobre Dinho, o caráter suspeito e, ao mesmo tempo, inconspícuo que os trabalhadores respondem e o ato do próprio roubo, torna aquela uma situação onde a expectativa mais comum (e essa foi a minha) seria de um encontro categórico e definitivo entre João (polo positivo da trama) e Dinho (o primeiro vilão). Mas a quebra é fatal e mostra que Dinho é um primo adolescente de João que furta por joguete, por algum tipo de status de banditismo, herdado por seu avô (ao que se vê no final do filme). Ou seja, onde esperávamos um encontro-combate entre o bom o mau, só há o normal; onde o mau mais nos parece um inocente pela sua inconsequência pueril.
Outra cena que nos cria expectativa, para depois rompê-la é a cena onde a personagem "Bia", de Maeve Jinkings, recebe o entregador de água e inesperadamente tranca-se com ele sozinha em seu apartamento. Não sei se algo nos olhares dos personagens, que sabem mais sobre a história do que nós mesmo, ou no ambiente que se desenvolve a partir de uma aproximação súbita e inesperada dos dois, faz com que cogitemos que algo de sexual vá acontecer, mas logo entendemos que a aproximação, a descrição e o segredo deles é por causa da droga que o entregador de águas vende. Essa mesma personagem protagoniza com o cão de um vizinho um duelo que só termina com o final do filme, mas que, no decorrer, nos cria uma série de esperas, como quando cogitamos junto com a personagem a morte do cão.
Os personagens dos seguranças particulares da rua são um exemplo quase cômico da frustração boa do cotidiano e, nesse sentido, a gente chega a questionar o modo como criamos certos medos que não se sustentam, a não ser na lógica que se têm dentro desse sistema de segregações que é a sociedade atual. Não vou chegar a uma crítica social mais aprofundada, pois essa está na superfície do filme, e acho que o mais interessante do filme é no que ele se confronta conosco, indivíduos espectadores, cada um na sua angústia. Voltando aos personagens seguranças, eles demonstram à todo momento que nós esperamos por um crime na rua tanto quanto eles, como na cena em que guiam um estrangeiro, ou na cena em que assistem a uma mulher vomitar, mas a cena mais exemplar é quando eles começam a contar a história de como se conheceram. Somos levados pela postura dos personagens, e até, talvez, por certo estereótipo preconceituoso do nosso sistema de segurança, a supor uma vida de entraves e solavancos ilegais e criminosos, mas o que temos são pessoas que se ajudaram em alguns momentos de dor e perda catastrófica. É praticamente uma sequencia de suposições furadas que fazemos ao longo do diálogo entre os três seguranças, pois eles vão criando esquemas suspensos de retórica que nos induzem ao erro de cogitar mistério onde não há.
Uma última cena, e essa um exemplo perfeito do som como personagem do filme, é quando o velho "Francisco", interpretado pelo ator Waldemar José Solha, sai pela madrugada solitário rumo ao mar e nele se banha. Um som de profunda gravidade o acompanha ao acender das luzes de segurança da calçada, de modo que, de alguma forma, esperamos ali mais do que um banho de mar noturno, mas esse "mais do que" não se faz existir e o rotineiro e banal permanece verdadeiro.

Quando, então, fazemos o que o filme quase nos obriga a fazer: sossegamos com as expectativas de mistério desvendado e apenas esperamos que o “nada” novamente aconteça, o susto nos toma pela mão e nos recoloca no medo de que alguma coisa possa modificar a lógica realista-banal, como quando aparece o personagem de um menino de rua, furtivamente, pelo telhado, dentro da casa supostamente vazia e em cima da árvore. Isso mostra que, apesar de termos responsabilidade sobre o tamanho de nosso medo, a insegurança existe - não como uma horda de assaltantes que invade a casa pela madrugada, mas como uma criança que nós mesmo criamos e que nos furta o pão e foge chorosa e amedrontada ao desferirmos um murro em sua boca.
A cena, que já citei, da cachoeira de sangue é a mais emblemática para o retorno às expectativas, pois algo é garantido com aquele banho de sangue, algo há por vir, mesmo que não venha visivelmente e definitivamente. Há uma história oculta no filme que se desvela no final, sem pompa e com a humanidade dos tremores das mãos e do receio de cada personagem, mas no momento em que se tem um combate final de forças (nem boas nem ruins, mas certamente forças) nessa história oculta há um corte perfeito que muda o foco para o duelo cotidiano entre a personagem Bia e o cão do vizinho, que estão no seu embate final ao mesmo tempo em que o duelo de forças se instaura. Portanto essa história oculta não é, e em momento algum se torna mais importante do que a história “aberta” do dia a dia.
Claro que se pode falar do contexto social do nordeste; das questões de poder que envolvem os coronéis e sua decadência; da urbanização grosseira das cidades; da  classe média e das falhas sua segurança das quais a própria classe média tem uma parcela de culpa, entre outros fatores, se quisermos analisar a história hermenêutica e subjetivamente, mas essas são questões mais dadas e que não valem nada sem o questionar-se a si mesmo que o filme induz. Poderíamos ainda falar sobre o nível das atuações, mas entendo que isso é supérfluo, nesse caso, apesar de termos boas atuações, a montagem é o principal personagem e tem uma atuação esplêndida. Fato é que esse filme quebra tanto as expectativas que muita gente que foi assisti-lo, esperando a maravilha mirabolante que os “críticos” estavam propagando, se frustrou. Mas acredito que o problema esteja justamente nos críticos, pois estes deram ao roteiro os louros e os créditos conseguidos unica e exclusivamente pela montagem. Logo, muitos foram assistir a um filme com um roteiro fantástico e viram, até sem perceber, e querer, um roteiro singelo com uma montagem profundamente genial, o que não vai sempre ao gosto de quem espera mais de um roteiro. Mas o que me encheu os olhos de novidade.


André Vargas