Vivemos o
afastamento contínuo das questões originárias das obras de arte como um todo.
Conhecemos as obras de grandes pintores através de figuras, sites e blogs
espalhados pelo mundo da “cibercultura” (Pierre Levy – Cibercultura), ouvimos
os sons do mundo que ainda podemos baixar nos nossos computadores, lemos os
seus escritos traduzidos, revisados, adaptados..., sem nos darmos conta de que
nos acomodamos completamente com esse “des-conhecer” das verdadeiras das obras.
Conhecer a
verdadeira obra é, nesse caso, ter um contato próximo, dialético e constitutivo
com o autor através de sua arte. E essa aproximação de olhares só é possível, a
meu ver, no contato direto com a obra em seu estado mais primeiro.
Em
se tratando da “era da reprodutibilidade técnica”, como indicou Walter
Benjamin, as obras de artes estão, de maneira quase comum, sendo dissolvidas
pelos meios através dos quais elas sobrevivem. Hoje em dia os meios de produção
da cultura, em algumas esferas artísticas, precedem as formas artísticas e as suplantam, não
fazendo sentido a busca pelo estabelecimento do contato único e exclusivo.
Percebemos
esse afastamento com mais nitidez quando nos deparamos com estas questões no
cinema, parte alvo da critica benjaminiana,
pois nele vemos a dissipação dessa questão como cerne e razão de sua existência,
uma vez que o meio como se propaga, e a função de se propagar a sétima arte, é
mais importante do que o link que a obra de arte original cria entre autor e
“uso-fruidor”. Ainda que alguma coisa da sua essência resista nas cópias
espalhadas pelo mundo, a origem deixa de ser questão.
(Digo “uso-fruidor”,
por acreditar que “fruidor”, quando o assunto é artes, é uma palavra que denota
muita passividade, ao passo que explorar o “caráter de utensílio da obra de
arte” (Heidegger – A origem da obra de arte) na denominação do esteta, me
parece mais honesto com a força “intelecto-criativa” imprimida por quem entra
em contato com uma arte).
O cinema foi
criado para atingir de maneira mais abrangente a maioria das pessoas, ou mesmo
uma maior quantidade de pessoas dispostas. Por muitos anos o cinema foi
considerado uma arte menor, justamente por essa perda de contato e por criar
uma forma de arte única e exclusiva não ao vivo, o que resulta na perda do
contato com o autor e seus atores e que no fim das contas significa que a obra
original se perderia com o tempo.
E o tempo
chegou tornando a propagação, que era difícil nos primeiros rolos de filmes,
fácil com arquivos de computadores. Assim, ressaltando o fim da obra original,
da matriz. Mas o assunto do cinema me parece mais cercado, confirmando-se e
afirmando-se sua existência nesses exatos termos. Mudemos então para as artes
plásticas.
Num catálogo
de artes plásticas, por exemplo, a forma de publicar e expor a obra original dos
pintores nos induz – veladamente, diretamente, ou mesmo despretensiosamente – a
querer conhecer a obra em si, nos aproximando do autor, travando um dialogo com
ele através do contato com a sua obra original, que exibe seu traço, sua
maneira e sua identidade, de certa forma. É possível estender esse assunto e
dizer que no caso de uma obra de arte arquitetônica, por exemplo, só faz
verdadeiramente sentido e só cria esse dialogo verdadeiro entre uso-fruidor e
autor, quando exposta no local onde ela foi feita, mas deixemos de casos e
vamos ao que viemos.
As adaptações de livros
Em se tratando
de arte literária a coisa se complica ainda mais. Pois não só o meio editorial
dissolve a origem, a obra matiz, como a tendência das adaptações cria um
rompimento completo com o dialogo com o autor, passa a haver uma monitoração e
uma mediação que nos acomoda no nosso próprio saber.
Estava eu, semana passada, em um
debate onde se afirmava o valor das adaptações de textos literários, porém a
quantidade de pessoas concordadas no debate e a possível guerra que iniciaria a
minha opinião me fizeram calar essa questão. De certa forma esse
constrangimento, de coração acelerado, que sofri durante meia hora, por ter de
me controlar, me fez bem, pois pude organizar algumas ideias para compartilhar
de uma maneira mais pacifica e sucinta.
Uma questão me
assombrou durante o debate, pois fui pego pelo calcanhar, como um Achiles.
Vamos cronologicamente situar a questão numa situação hipotética, como uma
historinha grosseira para eu exemplificar a minha questão:
Um autor
escreveu na década de trinta um livro, revisado e editado a altura do
“acontecimento poético” (Manuel Antonio de Castro – Acontecer poético), o que
já daria margem às criticas da interferência na obra, mas que durante a década
de quarenta se tornou conhecido, celebre e lido com maior frequência.
Nos anos dois
mil, a demanda por reedição desse livro se estende e as editoras percebem que
precisam adaptá-lo ao tempo do agora, pois sua linguagem já não é mais tão
usual; outra editora resolve adaptá-lo para crianças e pressupondo que elas são
seres alienados transforma os temas cruciais expostos na obra do autor em
coisas mais lúdicas; outra ainda, acha que o livro é muito extenso e o reduz de
500 páginas a 60 páginas com ilustrações.
Parece claro
que as adaptações interferem no texto original de uma forma fatal e grosseira,
atendendo a demandas extra-arte: demandas de mercado, demandas editoriais e
tantas demandas mais que não privilegiam por si só a permanência do livro
original, porém o que mais me deixa encucado é que estamos, dessa forma,
pautados no nosso conhecimento presente de mundo, de linguagem e questões, pois
as adaptações somente usam como argumento a necessidade de aproximar o leitor
da obra literária, mas o debate de épocas, conceitos e contextos históricos se
esvai; a função dialética da obra se perde e o dialogo de contexto se anula.
Nós nos
acomodamos com as adaptações, pois acreditamos estar em contato com a obra em
si, quando nem vislumbramos essa distinção, quando somos ludibriados pelo
resumo, revisão e edição. Os textos começam a ser facilitados em sua leitura, mas
era a dificuldade do trato linguístico e dos temas propostos em “Os irmãos Karamazov”,
que o significava.
Meu calcanhar
foi atingido por nunca haver percebido que me afasto, me acomodo e me ludibrio com um contato mediado das obras matrizes em função das traduções dos livros estrangeiros, e cabe aí uma crítica semelhante a das adaptações, mas, como não domino uma outra língua que não a minha própria, seleciono essa “anulação”
artística como saudável ao meu conhecimento, ainda que vago e intermediado, e as outras (adaptações e afins) julgo como afrontas à minha busca pela uso-fruição honesta e construtiva, mas acredito que a interferência do tradutor é menor e mais fiel a obra do que as adaptações.