segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Laranja Mecânica : fluência em cambalhotas


Um filme que virou um símbolo. Ao menos no meu ciclo de amizades (compreendam com isso certo gral de "alternatividade" cultural previsível) não há quem não conheça a história de Alex, talvez o filme mais reconhecível da vasta lista de produções assinadas por Stanley Kubrick. Um símbolo, sim, de fetiches, moda e etcetera e tal. Eu mesmo tenho uma camisa e uma caneca do filme e consigo perceber que, assim como outros símbolos da moda, há quem só conheça a imagem e não a obra. Há quem tenha a camisa e a caneca e não saiba exatamente do que se trata. O mundo anda cada vez mais mergulhado na alienação, e as camisetas do "Che", talvez a maior vítima dessa reprodução imagético-comercial desenfreada, é ostentada como bandeira por muitos que nem sequer conhecem sua trajetória e, por mais incrível que possa parecer, nem de longe compactuam com suas ideias. Mas isso é outra história.
O fato é que a adaptação de um livro em filme e a natural transformação de um produto artístico em símbolo esvaziado, em pura imagem que remete á qualquer coisa, acaba por condicionar o contexto intrínseco da obra em seus primórdios à um grupo seleto de admiradores e inquietos, e assim foi com Laranja Mecânica: livro de Anthony Burgess, autor que foi posto de certa maneira no ostracismo, ao menos em se tratando de Brasil, onde se colocou o seu livro em uma estante distante feita somente para fãs mais dedicados. 
Tudo permaneceria dentro dessa lógica se, em 2012, o mercado dedicado ao publico consumidor “alternativo” não tivesse reeditado o livro (o que, aliás, muito agradeço!) no ano em que a história faria cinquenta anos, com toda a pompa que um trabalho comemorativo necessita: prólogos, glossários, prefácios e afins, mas, por mais tentador que vasculhar a história que deu origem a um dos filmes de Kubrick de que mais gosto possa ser, a vontade de revisitar essa história só me veio, de maneira avessada, depois de estudar e pesquisar a vida e a obra de James Joyce. Fiquei durante um bom tempo somente com o estranhamento absurdo que o filme me tinha dado e a vida foi correndo seus próprios rumos, rumos que se deram em Joyce como divisor.
Nessa minha pesquisa sobre Joyce encontrei uma biografia escrita de maneira cativante por um escritor, compositor, teórico da literatura inglesa e grande amante da literatura Joyceana, e as posições contidas, e colhidas por mim, em Homem comum enfim - Uma introdução a James Joyce para o leitor comum (livro da Companhia das Letras que precisa urgente de uma nova edição, pois a edição de 1994 se encontra esgotada), corroboraram para a minha inclusão no grupo dos Joyceanos convictos e irreparáveis. Era a “biografia”, se é que podemos chamar assim, escrita por Anthony Burgess, nome que não me parecia estranho, “desestranhesa” esta que logo foi desvelada pela distinção de seu autor, pela obra que conheci na rebarba de Kubrick e pelas relações que pude criar entre o livro mais estranho que já li (Ulysses, de Joyce) e o filme que havia me causado maior estranhamento (Laranja Mecânica, de Kubrick). O trabalho sobre a linguagem a dar cambalhotas, em ambos com equivalente destreza, saltaram para mim como verdadeira paridade entre os autores, como laços de uma infalível hereditariedade.
Mergulhando ainda mais em Burgess, descobri outras referências feitas à Joyce, tais como as composições musicais sobre alguns temas de Finnegans WakeUlysses, traço da prática artística que, inclusive, aproxima ainda mais os dois autores, já que James Joyce também era um apaixonado pela música e um tenor de certa desenvoltura. Burgess era um profundo estudioso das literaturas, principalmente das obras de Joyce.

Só é uma pena que a obra de Burgess não tenha, ao menos em terras tupiniquins, a relevância que lhe é cabida e que não haja o resguardo devido da vida de seus textos com a constância de suas traduções e republicações, sendo que se trate de um importante nome da literatura de língua inglesa do século XX, constantemente colocado  ao lago de George Orwell (de A revolução dos bichos e 1984) e Aldous Hurxley (de Admirável mundo novo), autores com maior reconhecimento dentro dos motes da literatura de ficção cientifica. Talvez, como já dito, todo o processo de que foi participado tenha deletado um bocado da história de sua obra, mas é ressaltar o quanto me valeu ler seu livro, para que outros interessados embarquem nessa jornada. 
Basicamente, fora todas as relações não óbvias e constantemente abertas da história, o estranhamento que me causou o filme foi transformado em familiaridade com o livro. Não é que os problemas tenham se dissolvido em fofura ou conformismos pacíficos do tipo, mas, sobretudo, pelo grandioso trabalho de linguagem, pela noção de passagem de tempo através do personagem e por outros detalhes cerceados por certa censura moral que, para mim hoje, perante o livro, apequenam o filme de Kubrick. O livro tornou a história íntima ao apresentar a, ainda estranha, linguagem “Nadsat” (também utilizada no filme)de uma maneira perene e mais sedutora do que no filme, as gírias do grupo de Alex penetram nosso pensar até que se tornam claras como a água, nos colocando, então, dentro do grupo como partícipes, cúmplices, o leitor é mais um “drugui” e o código é compartilhado, mais ou menos como acontecem às pessoas que vão morar em outro país sem ter noção alguma da língua deste e aos poucos começam a ganhar fluência..., ganha-se fluência no livro de Burgess, mesmo sem olhar o glossário (o que, inclusive,  recomendo), fluência que é impossível no filme se não for devorado e ruminado com frequência. Essa relação com a linguagem criada por Burgess foi o fator de maior arrebatamento para mim, uma vez que era o contato mais potente com aquilo que mais une Burgess a Joyce: as cambalhotas da língua, que passam a ser de todos.  

       O filme continua tendo o charme da astucia sutil de Kubrick e a minucia dos detalhes que identificávamos antes de ler o livro (vale muito a pena ver e rever e rever e rever... o filme) e tenho que dar o braço a torcer, pois apesar das grandes diferenças entre filme e livro, e mesmo esse sendo um texto para apontá-las e reforçá-las afim de reconhecer os feitos de Burgess, Kubrick foi o diretor mais fiel ao ambiente e ao psiquismo dos personagens que eu já vi em adaptações ao cinema. Ainda assim, retornando ao livro, pareceu-me que, depois de ler o livro, para um bom mergulho nessa história, Burgess ainda é indispensável! 

sábado, 2 de agosto de 2014

O grande hotel Budapeste - Wes Anderson, um confeiteiro

O filme parece ter sido feito por mão de um confeiteiro, mais ou menos como as mãos de Agatha (personagem do filme que, na dureza de sua pobre vida, faz os doces mais delicados). Não parece ser a toa o seu nome ser Agatha, há algo de Agatha Christie no enredo do filme, assim como há um diálogo com tantas outras referências da história do cinema. É fácil ser jogado para outros e longínquos tempos quando nos deparamos com uma cena de perseguição toda feita em miniatura acelerada e efeitos especiais rudimentares que remetem à gênesis do cinema, o cômico em seu estado natural: não a graça escancarada, mas o sutil gracejo.
Não vou desvendar muito da história porque acho que esse é um filme que tem que ser visto, mas posso dizer sobre algumas relações que saltaram sobre mim ao ver cada cena e parecia que tudo (câmera, diálogos, símbolos...) conversava entre si, e até suspeito que brincavam.
  Foi engraçado perceber que o roubo de um quadro na história pôde me fazer pensar, ainda mais, no quadro-a-quadro do próprio filme. Como se um quadro saltasse das relações de enquadramento (típicas dos filmes de Wes Anderson) para o próprio enredo, me dando a sensação de assistir um filme 3D onde os objetos ao invés de nos atacarem a vista, saltam, ao contrário, para dentro da cena.
Wes Anderson é, em minha opinião, o cara dos jogos de enquadramento. Ninguém dirige melhor as câmeras – sobretudo quando parte da graça e da poética do filme é dada pela simetria e dissimetrias dos recortes fotográficos das cenas e, também, pelos movimentos de câmera que possibilitam a expansão dos planos e dos quadros – do que esse diretor. Anderson consegue tratar, principalmente nesse filme, com uma sutileza e uma delícia que só um bolinho Mendel’s poderia trazer, de temas “batidos”, porém fortes, como guerra, imigração, perdas, romances e amizade com a destreza e a simplicidade de um palhaço se levado a sério, e ele me parece gostar de contar histórias simples de suas pessoas com adornos fantásticos e burlescos.

Gosto do trabalho de Anderson desde que assisti ao filme: Viagem a Darjeeling, mas O Grande Hotel Budapeste me surpreendeu pelo impecável trabalho de arte estar tão bem misturado com o melhor roteiro montado para seus filmes até o momento. Créditos, então, além dos tantos dados a Wes Anderson, aos seus companheiros de roteiro Hugo Guinnesse Stefan Zweig.

terça-feira, 27 de maio de 2014

A besta e a flecha

Enfrentar a besta. Alvejá-la e feri-la mortalmente. Com as setas que ainda se fazem de mão ágil e pensamento certeiro. Com pontaria eximia, trabalhada no olhar de enxergar queda de folha seca, no olhar de contar cada veloz braçada de pássaro. O mesmo olhar que já vê, há bastante tempo, avançarem os bois sobre o pasto. Olham, mas precisam ver. Ver se põe maior que olhar. Ver se impõe! E calcula! E não enxerga. A besta, então, calcula e não enxerga a farpa, a falha, o ferro, a pecha..., de calcular, de responder, de autorizar, de aceitar... Ordens!  E a besta não avança mais para comer, a besta avança para con-ter no padrão, na norma - todas as flechas; mão a mão - todas as miras. Como ter em uma moldura, em uma clássica moldura adornada em ouro, uma pintura pacífica, uma versão amistosa de toda a história do encontro: besta e flecha. Embate vivo do guerreiro, esse guerreiro, da guerra todos os dias. Bom e mau ao mesmo tempo. Guerreiro, flecheiro, mortal, capaz de qualquer movimento. Guardião de um mundo particular, se despetalando, que o Mundo, quando muito, cisma em romantizar. Mas a besta flechada só contém flecha achando, coitada, conter o desfecho. A besta pranteia a própria queda, encaixada em sua forma arcaica e redundante de fera. Vejo-a, ainda a carregar um brasão de colônia, um brasão de império, um santo, um terço, um panfleto e as armas do impropério sem reconhecê-las o mistério.
Besta-progresso, sangrando por dentro do gesso do mérito. Que as flechas mais do que ferir te toquem!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Língua quente

Delinquente, de língua quente. Cada vez mais eu gosto dessas palavras, essas palavras que socam o rosto de alguém culpado por nossa culpa.
Clandestino, no destino do ser de ser clã e o destino do clã é ser clandestino. Cíclico em suas lutas em seus anseios. Toda luta é clandestina. Todo o vencedor sai vencido. Só ganhamos como prêmio outras lutas clandestinas.
Vagabundo, vagando no mundo, vaga, espaço, fundo, abismo..., as dores do real, nenhum segundo é igual, nem um segundo. Nenhum profundo é igual olhe pro fundo, findo.
Estupido, estampado de estampidos, estupro do entupido de massa, estuporado o maior de todos os ruídos, a maior de todas as coragens. 
Vadia, vai-se o dia sobre outro dia, sobre outro dia e sobre outro dia nada se sabe e ela se sustenta, ela peita e ela entende, ela se invade.
Vândalo, em bandos, em pêndulos, os humanistas.
Meliante, desde antes de o mel escorrer, antepara-se a si mesmo, mas respira-se, repara-se e sê. 

Desvio é a única forma de andar.
Choque é a única forma de relação.
Ignorante é ser normal.
Fascinante é o ser-tão.
   
Luta puta
Vagabundos mundos
Medo-cedo
Ficamos mais calmos

Nego, nêgo

Briga bugre e bastas!
Nós garganta
Não nos garanta nada

Viva a luta

Vadia da rua
Ódio remédio
Para espantar o tédio

Apatia 

Apetitoso prêmio
Novalgina em gás
Lagrimas de gênio

Educar é du caralho, velho!

Educação da caça, povo eleito
Feito às nossas falas, feito
Feito os nossos tambores, feito

Repressão 

Represa o cursar do Rio
Alagando em outro canto a voz
Somos nós
Somando nos desafios
De jorrar o Rio em outra foz.


André Vargas

sábado, 3 de agosto de 2013

Dentro do funk, o protesto


A música, eu indicaria primeiramente a música como aquilo que une esse grupo de pessoas numa cultura particular. Claro que se poderia pensar primeiro na questão social, na camada a qual pertencem essas pessoas e assim caminhar para um ponto sociológico cabal, uma visão talvez marxista dessa cultura que estruturaria toda uma crítica social embasada na dialética e na lógica materialista, ou até uma outra visão social, esta, porém, leviana – por não conseguir alcançar o “verdadeiro” sentido dos sistemas de exploração e ficar no meio do caminho do exame social e do exame, por assim dizer, antropológico –, mas acho que eu erraria ainda mais, porque seguindo adiante nessa visão sociológica, deixaria de me aproximar, diretivo ou levianamente, dessa cultura enquanto manifestação identitária e incontrolável que é, e, ainda, estaria caminhando para um lado que parte de, e institui, um julgamento de valor e uma distinção  entre erudito e popular que em nada nos auxilia a compreender essa cultura que reflete e se deixa refletir não só o morro, a favela, o subúrbio, mas toda a relação dos meios, das classes e das culturas que se configuram na nossa sociedade. Então, indico a música como fator determinante, inclusive porque senão não trataríamos de nomes como “funkeiros” e, assim, cunhando com um radical “funk” que indique a música como elemento preponderante.
Eu poderia ir além e dizer, o que seria um deslize clichê, que o funk hoje não é mais “Som de preto, de favelado...”. Que o funk é, em boa parte, assumido e consumido pela classe média e alta e, com isso, assume contornos distintos do que era quando marginalizado, para poder pautar a minha escolha pela música, e não da estrutura social, como determinante de um olhar diferente sobre o mundo, mas acho essa ideia de cultura que se espalha muito concernente e cômoda somente à indústria cultural, pois há ainda muito de particular no funk dentro das comunidade. E é desse funk, ainda não coletado, cooptado e pasteurizado pela indústria cultural e pela moda que vamos falar; esse funk que ainda, e talvez para sempre, revelará um olhar, que, aí sim, podemos dizer conscientemente dos massacrados; dos marginalizados; dos explorados; dos ilhados pela sociedade.
Sim, o funk carioca é uma cultura determinante e completa, como imaginamos ser qualquer outra cultura: com estética, postura, padrões de beleza, moral e ética, ideologias e etc., Tudo aquilo que se pode resumir numa palavra muito utilizada no mundo funk que é o “proceder”. Existe um “proceder funkeiro” e essa palavra – “proceder” – resumiria bem a noção de qualquer cultura, ativa e viva nos homens como elas são, e não estáticas e mórbidas como lemos, estudamos e geralmente identificamos. A cultura nesse “proceder” está como que atrelada ao caminhar, ao se posicionar e ao olhar que cada grupo possui de si mesmo e do mundo.

              “E Aê irmão
Humildade e disciplina
Vida loka
Diretamente do chapa só proceder
Turano se liga vou dizer
É paz, justiça e lazer...”.
(Aê irmão - Menor do Chapa)

O proceder é essa ética própria, essa estética singular, esse portar-se e responder ao mundo que confere ao funkeiro o status de identidade cultural distinta. O proceder é o que diferencia o funkeiro do pagodeiro, grupos que muitas vezes coexistem num mesmo meio. Apesar de, também muitas vezes, ser muito provável que encontremos entre os fruidores dessas manifestações artísticas, pessoas que se somam ao mesmo tempo a funkeiros e pagodeiros, nesse caso, em particular, estou tratando do funkeiro enquanto prática desse olhar, do funkeiro que não é um simples usufruidor da manifestação funk, mas quase que um ativista – enquanto artista – do funk.


É inegável, assim como assinalou Francisco Bosco em sua coluna no Jornal O Globo[1], que existe algo de dionisíaco no ritual que se pratica nos bailes. Uma mistura quase transcendental de corpos em danças frenéticas e eróticas; corpos embriagados de desejo, prazer, suor e álcool. E inegável também que é ali, nos bailes, que o jogo de forças, ou melhor, da lei dos mais fortes se posta explicita, onde homens e mulheres exibem seus atributos corporais, sexuais e materiais em um ritmo quase tântrico, como que se pavoneando uns aos outros. O som do “batidão” ou “tamborzão” (reproduções de batidas de jongo e de pontos do candomblé que assumiram a condução do ritmo, depois das batidas eletrônicas do Miami bass da década de 90) é mais uma marca da herança negra, marca que se encontra também nas roupas, nos cabelos, nas formas, nos corpos e por toda a parte. Alguma nudez talvez venha dessa genealogia tribal e não conferem diretamente, no entanto, o mesmo juízo moral que se encontra na sociedade mediana, ou na burguesia, por assim dizer. Os corpos estão expostos e não faz nenhum sentido a crítica do estilo das vestimentas da exposição da carne, inclusive porque está sendo travada exatamente uma batalha sexual, mas também por causa de uma moral própria que se assiste e que compreende esse grupo, onde gêneros e posturas se misturam e se permitem transladar com alguma liberdade em torno dos sexos sem que isso se torne símbolo de devassidão ou qualquer coisa do tipo.
A diversão e a graça são outras potencias dessa manifestação e a dança tem um papel importante para essa configuração. A gozação e a risada, para além dos passos ritmados, detonam uma abertura para a possibilidade de se reestruturar a dinâmica dos movimentos corporais e assumir, a qualquer custo, a sua forma de conduzir a si mesmo. Se ri do outro, se ri de si, dança-se sem medo de errar, até, em alguns momentos, objetivando a graça e o erro. Cada corpo e cada intenção chama atenção para si com as armas que tem: uns com o sexo e com a destreza da dança e outros com a graça e a paródia. E o “Passinho”, dança do funk que mistura elementos do kuduro africano, do frevo, do break e de outras danças, é o representante mais potente dessa mistura entre o bobo e o sensual, entre a graça e a destreza, e, além disso, é o representante da força pulsante, vital e criativa que possui, e é possuída pela, a cultura funk.

Nasce, então, talvez da forma com que se configuram os corpos nos bailes, misturada com a forma de manifestação dos poderes (machistas ou não) na estrutura social, com uma pitada forte de reformulação moral da noção de corpo, além da carência de estima de um povo que sofre as dores de uma sociedade fragmentada e cruel nas suas desigualdades, o apego material que ficou bastante visível no funk nessa última década. Fora do baile as letras começaram a refletir o jogo do status e do sexo dentro dele e, com isso, expandiu-se a lógica interna desse gueto para as outras culturas da cidade, criando embates conceituais sobre as posições, os valores e as ilusões existentes.

O funk ostentação, o funk “putaria”, a mulher no funk e certas lógicas machistas para quem observa de fora começaram a eternizar no funk, e no funkeiro, em relação às culturas que se sobrepõem à cultura da periferia, uma carência por igualização entre essas culturas, não uma equalização das mesmas, mas uma simples troca do que é sempre visto como o "bom", o "sucesso". O funkeiro agora quer ter e ser, ou mesmo parecer com um mafioso, um burguês, ou até mesmo um rapper americano (crias da periferia de uma outra realidade), um milionário, um super-homem de autoestima inabalável e cercado por mulheres que o desejam e as funkeiras objetivam em suas letras o jogo da sedução, onde elas são “gostosas”, “cachorras”, "poderosas" e escolhem os seus homens, roubam os homens das outras, mas, com isso, se veem sempre sobre a perspectiva do desejo do homem e não percebem a força de seu próprio desejo. Sem, desde já, traçar nenhum juízo de valor, o funk, a partir da demanda da carência de homens e mulheres, se aproxima do universo particular da cultura “Hip pop” americana, inclusive nos seus ícones que se distanciaram da origem de contestação social do Hip hop para a questão do status social, das posses e dos prazeres imediatos. O que, mesmo sem discutir e explicitar o mundo de explorações onde vivem os funkeiros, não deixa de refletir as particularidades dessa identidade cultural e as carências incutidas pelo mercado de consumo.

Destinos, trajetos e objetivos a parte, um grupo de MC’s permanece arraigado a um tipo de funk que para a mídia ficou no passado; para alguns funkeiros ficou na memória e para outros só fazem parte da história; um tipo de funk que pode ser que não seja interessante hoje em dia para a indústria cultural; pode ser que não se adequem a massificação, ou às demandas insurgentes da nova classe media brasileira e pode até ser que sejam os mais combatidos, convenientemente, pela força do poder do Estado: o funk de protesto. Nomes como MC Leonardo, MC Júnior, MC Cidinho, MC Doca entre outros, que frequentavam as rádios e televisões na década de 90, hoje formam uma espécie de resistência. Não uma resistência de força já que não há um combate direto ao funk de protesto, mas uma resistência justamente ao poder da mídia que os suprime e os tenta calar e apagar, que tenta fazer do funk uma manifestação com uma só via, a via contemporânea da “sexualização” e da ostentação, excetuando-se, é claro, o funk melódico onde a temática do amor permanece intacta e o funk galhofa onde o humor é a principal intenção.
Então seriam esses funkeiros ligados culturalmente pela resistência que representam? Pela simples contestação social de suas letras? Pela sua alternatividade perante o mundo mercantilizado e pela sua independência da mídia? Esses são fatores de grande importância nessa delimitação da cultura do funk de protesto, mas, mais do que isso, o que liga cada um desses MC’s é a posição e a consciência social e política dentro e fora das suas comunidades. É muito fácil dizer “Tá tudo errado”, como o MC Leonardo e o MC Junior indicam na letra de sua música homônima, porém o MC Leonardo, por exemplo, representa um ícone político, não só por sua história político-partidária no Psol, mas por sua história de luta pelo funk, pela sua comunidade e pela igualdade de condições. A cultura do funk de contestação se liga, então, pela prática e pela luta na construção, ou melhor, para usar um conceito derridiano, na “descontrução” da sociedade com a formulação, por exemplo, de movimentos como a APAFunk[2] , na elaboração de leis como a “Lei Funk é Cultura (Lei 5543/2009)” e em tantas outras bandeiras que levantam esses funkeiros.
Muitos desses funkeiros sofrem e sofreram perseguições dos aparatos de controle do estado; autuados, presos e fichados pelo crime de apologia ao narcotráfico. Onde as suas músicas, que refletiam a vida do jovem marginalizado, acabaram por sentencia-los culpados de toda a exploração que se sofre nas favelas. As suas roupas, perto dos funkeiros da mídia, são bem mais simples, traço que indica que a consciência de suas posições sociais avança para a vestimenta. Claro que a roupa não foge completamente do padrão funkeiro, sobretudo daquele funkeiro da década de 90. O boné, o bermudão e a camisa larga ainda regem o estilo. Mas se engana quem pensa que esse grupo de funkeiros compreende uma faixa etária só, que só mesmo os velhos Cidinho, Doca, Junior, Leonardo..., levam essas letras de protestos. O funk de protesto se renova a cada ano - como na voz do jovem MC de São Gonçalo, PH Lima do funk (Bandido do Rio) -, ainda que perseguido e marginalizado pelos governantes, renegado pela mídia, se renova forte no peito do jovem que busca uma identificação conjunta a partir de sua própria e difícil realidade.

O funk, sendo de protesto ou não, é já uma crítica social, pois expõe uma cultura que cotidianamente é assolapada pelas questões prévias da elite social, mas o funk, para além das estruturas sociais demonstra que a cultura se impõe e se expande para o outro, tanto como moda, como dança, como forma de corpo, como ritmo, como olhar, como som..., e ao funk de protesto cabe ser a voz que diz “a real” e chega aos ouvidos atentos.

Mas não me bate doutor
Pois eu sou de batalha
E acho que o senhor
Está cometendo falha
Se dançamos funk
É por que somos funkeiros
Da favela carioca
Flamenguistas, brasileiros

Apanhei do meu pai
Apanhei da vida
Apanhei da policia
Apanhei da mídia
Quem bate se acha certo
Quem apanha está errado
Mas nem sempre meu
Senhor as coisas vão por
Este lado, violência só
Gera violência irmão
Quero paz, quero festa
O funk é do povão
Já cansei de ser visto com
Discriminação
Lá na comunidade funk
É diversão, hoje tô na parede
Ganhando uma geral
Se eu cantasse outro estilo isto
Não seria igual.
(Não me bate doutor - Cidinho e Doca).






André Vargas 




Letras em http://letras.mus.br
Estética funk http://www.riobailefunk.net/




[1] Arte e “Povo”. Texto de Francisco Bosco para a sua coluna do jornal O Globo em maio de 2013, onde o escrutor fala da relação do funk e da dança “passinho” como questões dionisíacas, transcendentais e não contemplativas e “conteudísticas”.
[2] A APAFunk foi fundada em 10 de dezembro de 2008, por profissionais e amigos do funk cansados de assistir à discriminação sem fazer nada. O intuito é defender os direitos dos funkeiros e lutar pela Cultura Funk, contra o preconceito e a criminalização. Para isso, a Associação promove debates na sociedade sobre a situação dos artistas do funk, bem como atividades de conscientização dos funkeiros sobre seus direitos. Rodas de funk, palestras e videos são alguns instrumentos utilizados pela associação para levar a mensagem da Associação para universidades, escolas, cadeias, favelas, praças, ruas e todas as instituições da sociedade que abram espaço para debater a nossa cultura.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O meu olhar manifesto

Eu nunca fui um sujeito engajado, na prática, em causas políticas. Tenho, inclusive, muitas ressalvas aos partidos, às legendas e a cegueira das doutrinas partidárias que não sustêm uma autocrítica construtiva ou uma possibilidade dialética de renovação, ou melhor, de desconstrução de seus saberes. Mas, sempre nutri meus pensamentos sociais críticos com leituras e tessitura de textos que acabam por refletir, além da minha aporia prática (minha ausência em passeatas, manifestos e protestos) a minha hiperatividade e o meu incomodo criativo político-social (meu olhar sobre as questões comunitárias ao redor).

Porém, sinto uma sede imensa de me manifestar, quando uma causa me toca por sua inequívoca pluralidade: abarcando todas as classes e posicionamentos políticos; causas que tratam do bem comum mais perceptível; causas que deveriam nos unir, pois refletem no que todos nós sofremos; causas como a do manifesto que participei hoje, contra o aumento abusivo das passagens no transporte público.

Na semana passada, ao ver as manifestações de São Paulo pela mesma causa, comecei a me questionar sobre a postura do carioca diante dos abusos nas tarifas, e seus aumentos, cobradas sobre qualquer produto, tornando o Rio de Janeiro uma das cidades mais caras do mundo, e pensei em todos os clichês de estigma carioca para poder responder à uma possível inércia do povo. Mas comecei a ver pelo facebook uma movimentação de agrupamento e manifestação contra o aumento das passagens que prometia juntar muitas pessoas que, como eu, não aguentam mais os descasos sofridos e conseguem sair do trauma da violência da exploração de seus trabalhos e estudos para poder criticar os rumos da nossa sociedade.

De pronto aceitei me juntar a esse “ato unificado”, já sabendo que lá estariam os partidos de sempre, os gritos de ordem de sempre e a cara de sempre, não a cara do povo - pois esse ainda não consegue escapar do trauma da violência da exploração de suas vidas, já que havemos de ter, para isso, uma força extra, a força da consciência social-, mas a cara do jovem de classe-média engajado e politizado, que fazem parte de uma microelite ideológica (eu era, lá, mais um com essa cara).

Não gosto de muvucas, aglomerações ou qualquer dez pessoas, sinto que grupos tendem a criar descontroladamente um pensamento devastador de uma hora para outra, pautados na coragem que passam a possuir os indivíduos coletivizados e massificados. Um grupo passa a pensar por si e o pensamento individual acaba por escapar. Gosto de manter minhas escolhas intactas. Mas lá estava eu com vergonha de gritar, de pular, de bater palmas, mas indubitavelmente presente e ciente da força do ato de protesto.

Tremulavam bandeiras de partidos e retumbavam vozes juvenis nos megafones e microfones, algumas caras percorri em busca de uma companhia conhecida, alguns conhecidos, mas ainda não me deixo chamar de “companheiro” qualquer que seja a criatura.

O ódio, e o desejo de combate masoquista já estavam estampados no rosto dos policiais que cercavam a movimentação, falavam e pensavam entre eles as atrocidades que fariam com aquele bando. Deglutidos e digeridos, como estão, pela doutrina lógica do estado forte de repressão, preparavam suas armas para combater a baderna.

Partimos da Cinelândia, onde nos reunimos em frente à Câmara municipal dos vereadores, para a Rua Araujo Porto Alegre rumando para a Rua Primeiro de Março. Parando, vez por outra, em frente aos prédios emblemáticos do paradoxo da justiça na cidade e no estado de onde pude ver tudo com clareza, apesar de estarmos em, mais ou menos, trezentos manifestantes para a mídia e seiscentos para os manifestantes. Eu estava andando pela calçada cômoda e investigativamente.  Não havia imprensa ao lado, noticiando a manifestação, muitos fleches salpicavam de fagulhas os olhos, mas eles eram nossos, éramos nós a registrar os nossos momentos. A ausência da imprensa e a predisposição da PM me fizeram calcular a obviedade: qualquer pequeno estranhamento transbordaria o caldo da pacificidade. Uma agonia me tomou quando um punk anarquizou a bandeira nacional e a pôs em fogo, percebi ali que uma parcela bem pequena estava disposta ao conflito tanto quanto os policiais.

E eis que, chegando à Primeiro de Março, os PMs prendem um daqueles punks que atearam fogo à bandeira. As pessoas recuaram do caminho do protesto e clamaram por justiça quando viram o rapaz sendo detido. Era a deixa que a policia precisava para começar o que previra desde que ouviu o brado “Acabou o amor, isso aqui vai virar Turquia!”. Aproximadamente cinquenta homens do batalhão do choque e uns tantos PMs com suas bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, cassetetes e spray de pimenta..., açoitavam a todos que lá estavam. Junto com a truculência se seguiam injúrias “Vagabundo!”, “Sai daqui, cachorra” numa obra de horror vivo e vertiginoso... Os gases eram espirrados a uma distância ínfima dos olhos das pessoas que estavam nas calçadas e que, às vezes, nem parte da manifestação eles faziam.

Os manifestantes não conseguiram se reunir novamente. A polícia dispersava, ainda com truculência temperada com pimenta, qualquer reunião, inclusive para pegar (e pagar a R$ 2,95) o ônibus.
Eu nunca tinha sentido antes o efeito do spray de pimenta, mas posso dizer agora, de onde eu estava a ver, que a minha vontade de chorar se deu mais pela forma como tentam nos calar do que pela irritação nos olhos. O mais gozado é perceber que o policial também paga a passagem e, talvez, também a acha injusta, mas ele não consegue perceber a comunidade desse grito, desse gesto e nem tão perto do nosso tempo fará o que bem devia: juntar-se e lutar do lado certo.

Ficou claro para mim que muitas coisas, infelizmente, não mudaram nos movimentos estudantis, partidários, esquerdistas..., inclusive, o que já falei, e que talvez seja o pior dos indícios, a nossa cara de elite. Mas também ficou claro para mim o quanto os nossos brados são inconsequentes e infantis; o quanto nossas ideias de manifestações são fórmulas copiadas de outros lugares. Ficou claro que um ato unificado, que seja, tem que ser organizado para que pequenos grupos não fujam do tema e se inflem sobremaneira e, mais do que isso, ficou insuportavelmente claro, para mim, que não temos a noção de povo que devíamos, a noção de que somos um só e único povo, mas, sim, destacamos o carioca ordinário que quer voltar para casa, ver novela e descansar - que quer esquecer o trabalho do dia-à-dia, e para quem qualquer pensamento crítico é coisa de vagabundo, desses mesmos “vagabundos” (que logo somos),  que deviam agir numa mudança de consciência desse ser-senso-comum massificado e explorado, mas, pelo contrário, se fecham na crueza de uma ideologia do bem comum presa a elite esclarecida e burguesa para poder criticar a ignorância do restante.

Sobre a polícia, só posso concordar com o nosso filósofo Vladimir Safatle que escreveu o artigo na Folha de São Paulo “Pela extinção da PM” e rezar para que um dia isso ocorra. Sobre a imprensa, só posso dizer que a ausência da imprensa foi cômoda, pois ela pôde depois dizer o que, alias, já disse: “Ninguém sabe quem começou o confronto” - eu sei. Sobre o prefeito Eduardo Paes, eu só espero que ele cumpra o combinado se o Brasil perder a copa para a Argentina e sobre o transporte, eu vou continuar criticando, suas tarifas e serviços, mesmo que eu seja obrigado a usar, e me calar por instantes coléricos, do mesmo.


André Vargas